Autor:
Redação
Seção:
Memória
Publicado em:
2 de Janeiro de 2025
Tempo de leitura:
10 minutos

A imprensa alternativa cumpriu um importante papel na resistência à ditadura e soube utlizar com brilhantismo as ilustrações
O espaço da charge na imprensa alternativa
Por: Redação
O governo ditatorial do general Garrastazu Médici regulamentou a censura previa à imprensa em 26 de janeiro de 1970 através do decreto-lei 1.077 (medida estava prevista na Constituição autoritária de 1967). A partir de então coube aos censores, representantes da Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal, autorizar ou não a publicação de textos na imprensa brasileira.
Obviamente a medida cerceou a liberdade de jornalistas e empresas de comunicação com profissionais sendo perseguidos e fechamento de veículos, mas o jornalismo comprometido com as liberdades democráticas reagiu criando uma onda de publicações que, à margem das grandes empresas jornalísticas, resultou em um verdadeiro movimento de resistência civil capitaneado pelas publicações chamadas alternativas que heroicamente afrontavam o poder ditatorial.
“Ao fim de 15 anos de ditadura militar brasileira, haviam nascido cerca de 160 periódicos de vários tipos – satíricos políticos, feministas, ecológicos, culturais – que tinham como traço comum a intransigente oposição ao governo. Hoje pertencem à história. Todos desapareceram”.
Bernardo kucinski, jornalista
Graficamente esta imprensa se caracterizava pelo uso de charges, caricaturas e ilustrações em grande escala, obras produzidas por uma legião de artistas que, para além do profissionalismo, se identificavam com a luta democrática e resistência à ditadura. Outra questão interessante é que, em sua maioria, os jornais eram impressos em tamanho tabloide, que era visto como um formato “menos nobre” do que as grandes páginas dos jornais tradicionais modelo “standards”, o que também ajudava a identificar o conteúdo jornalístico como diferenciado em comparação aos chamados jornalões mais dóceis ao governo.
Naqueles tempos de reconquista democrática circulavam títulos que hoje fazem parte da história do jornalismo brasileiro: Opinião (reprodução ao lado), Movimento, O Pasquim, Voz da Unidade, Em Tempo, e tantos outros de heroica trajetória e de bravos resistentes. Os mais de 40 anos que separam os dias de hoje daquela experiência pioneira fez com que os então jovens desenhistas que publicavam em suas páginas se tornassem experientes veteranos nas artes e no humor gráfico (infelizmente vários deles faleceram).
Recolhemos para este texto uma série de depoimentos de artistas que participam da Revista Pirralha e que estiveram envolvidos com a imprensa alternativa naquele momento. A seguir um breve panorama das lutas dos chargistas pela redemocratização do país.
"Eu fazia charges pro Em Tempo, Convergência e O Trabalho; o Maringoni e o Jayme Leão foram da Tribuna Operária, do Raimundo Pereira; o Éton da Hora do Povo do MR-8, Cláudio e Zepa Ferrer no Voz da Unidade. Jayme Leão, Maringoni, Elias Andreatto e Rubem Grilo depois foram pra coleção Retrato do Brasil, eu e Fernandes entramos quando o Retrato do Brasil virou jornal diário."
Bira Dantas
Ainda estamos aqui
Cláudio de Oliveira
Fui ver com a família o filme “Ainda Estou Aqui”. Adorei. Para mim, o filme é uma denúncia contundente e eficaz do regime ditatorial que vigorou no Brasil de 1964 a 1985. E as duas Fernandas, Montenegro e Torres, mãe e filha, estão magistrais. Recomendo “Ainda Estou Aqui” aos meus amigos. Uma página que espero virada da nossa história, mas que não pode ser esquecida.
Chamou-me a atenção o “Gaspa”, citado várias vezes no filme. Trata-se de Fernando Gasparian, amigo da família de Rubens e Eunice Paiva e fundador do jornal “Opinião”, importante semanário que circulou de 1972 a 1977. Fernando Gasparian foi proprietário da Editora Paz e Terra e nas décadas de 1950 e 1960 era filiado ao PSB. Em 1986, foi eleito deputado constituinte pelo PMDB. Cheguei a ler o jornal editado por ele. Henfil, que colaborava com o semanário e morava em Natal desde 1976 foi quem me passou alguns exemplares. Depois passei a comprá-lo nas bancas. Mas, em abril de 1977, o “Opinião” fechou.
Outra publicação importante foi a Voz da Unidade (no destaque com capas do chargista Cláudio), fundada em 1980 com a abertura política. Era um jornal oficioso do PCB que buscava a legalização, só obtida com o fim da ditadura em maio de 1985. Colaborei no jornal de 1982 a 1989, quando fui estudar em Praga. Quando voltei ao Brasil, em 1992, o jornal não existia mais, deixou de circular em 1991. Acho que nesse ano o Pasquim, onde colaborei a partir de 1977, também deixou de circular. Quando sai do Brasil em setembro de 1989 Brizola e Collor estavam empatados. A última charge que publiquei mostrava o Brizola olhando pro Collor vestido com um tomara que caia; desenhei em um guardanapo quando estava para pegar o avião no Galeão rumo a Tchecoslováquia. Pedi a um amigo que morava no Rio para enviar pelo correio para o Pasquim.
"Meu primeiro desenho saiu no Ex. Depois no Em Tempo e no Hora do Povo. Mas foi no Movimento que permaneci por mais tempo ilustrando e colaborando na página Corta Essa, do Chico, depois Alcy. Meu primeiro cachê em São Paulo recebi do Tonico Ferreira."
Vasqs
Escapando da repressão
Nilson Adelino
Eu ajudei a fundar e colaborei em Minas nos jornais De Fato e Em Tempo, do Centro de Estudos do Trabalho (CET) que publicou uns 20 caderninhos didáticos em quadrinhos. Também colaborei na seção mineira do jornal Movimento, além da participação no Vira Lata, a última página do Folhetim com editoria do Angeli na Folha de S. Paulo. Aliás, eu e ele colaboramos com o Voz da Unidade quando os comunistas voltaram antes da Anistia..Durou pouco.foram presos logo…
"Em 1983 quando desenhava para o Voz da Unidade em uma ocasião sai para ir até a Folha de S.Paulo, na redação do Vira Lata, quando cheguei no jornal o Angeli me informou que o Voz tinha sido invadido pela polícia, ou seja, escapei da repressão por uns 20 minutos."
Nilson Adelino
Eu, Jota, Alcy e outros do Vira Lata fazíamos também uma página no jornal Movimento chamada Corta Essa, mas eles brigaram com o Raimundo Pereira e eu fiquei fazendo a página sozinho. Acho que durou só três edições pois o jornal fechou. Colaborei também em O São Paulo, jornal da Arquidiocese de São Paulo, então comandada por Dom Evaristo Arns e mais tarde na Gazeta de Pinheiros quando foi comprada pela Marília Andrade.
Em Minas eu, o Lor e mais uns 12 fundamos o Humordaz que durou um ano e meio como página do Estado de Minas e duas Edições do Almanaque do Humordaz até que foi parado pela censura (no destaque as capas das duas edições). Ao mesmo tempo com vários amigos fizemos os 3 ou 4 números da revista UAI. Neste período, durante 3 anos e meio, publiquei no suplemento Infantil do Estado de Minas o meu maior personagem; o Negrim do Pastoreio.
A imprensa dos trabalhadores
Guto Camargo
A medida que as oposições sindicais conquistavam as eleições das entidades a partir dos anos 1970 e início dos 1980 a imprensa sindical ressurgir e também privilegiou o uso das ilustrações em suas páginas e pouco a pouco o movimento sindical e sua imprensa foram ganhando importância no contexto da redemocratização e incorporando os chargistas em suas páginas.
Um dos grandes exemplos vem do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema que criou em 1972 a personagem João Ferrador. Sua origem se deve ao jornalista Félix Nunes e a arte coube ao chargista Otávio. O cartum que através do bordão “hoje não tô bom” criticava a política e a economia da época fez tanto sucesso entre os operários que se tornou o símbolo do sindicato e foi desenhado por vários artistas ao longo dos anos, começando pela Laerte (reprodução ao lado).
Em 1975, ano do assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela ditadura militar, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo lança o jornal Unidade que, até pelo fato de contar com vários cartunistas entre seus associados, utiliza regularmente a ilustração em suas páginas. Inclusive, na gestão 1984-1987 (presidência de Gabriel Romeiro) o sindicato contou entre seus diretores eleitos os chargistas Henfil (Conselho Fiscal) e Ohi (Suplente de Delegado à Federação Nacional).
Privilegiando os ilustradores (da esq.para dir.): Chico Caruso, Zélio e Jaime Leão.
Outro chargista com presença constante na imprensa sindical é Bira Dantas, inicialmente ligado às oposições sindicais que disputavam as eleições contra os “pelegos”, dirigentes dóceis tanto ao poder político quanto empresarial. Em 1983 ele passa a ilustrar para o boletim Sindiluta, do Sindicato dos Trabalhadores Químicos e Farmacêuticos (abaixo a sua primeira charge publicada no boletim).
Zepa Ferrer, ligado ao movimento sindical, também chegou a publicar no Voz da Unidade. Militante do PCB e do sindicato dos trabalhadores do Metrô de São Paulo ele teve uma rápida passagem pela imprensa alternativa (ao lado uma de suas ilustrações para a Voz da Unidade). Por sua vez, em 1979 Fausto Bergocce, e Laerte produziram em conjunto para a Oboré o Gibi do Trabalhador que foi lançado em São Paulo e no Rio de Janeiro. A Oboré, uma iniciativa do jornalista Sérgio Gomes se apresentava como uma agência especializada em comunicação sindical que reunia vários desenhistas em seus quadros. Apesar de a Oboré permanecer ativa até hoje houve uma cisão entre os seus fundadores após a criação do Partido dos Trabalhadores – PT e da Central Única dos Trabalhadores – CUT quando uma parte do grupo (entre eles Nilson e Henfil) passa a apoiar o novo sindicalismo e a outra permanece ligada ao Partidão e a Central Geral dos Trabalhadores – CGT.
Quando voltei de São Paulo para Minas, em 1982, trabalhei como chargista no Jornal do Sindicato dos Telefônicos (Sinttel) durante 3 anos e no semanário Jornal de Domingo, publicação independente que acabou no início do governo FHC. Depois disto comecei como chargista no Sindicato dos Eletricitários (Sindieletro) onde fiquei por 32 anos, além de 3 anos trabalhando também no Sindicato dos Metalúrgicos.
Nilson Adelino
Após a abertura política com a criação de novos partidos as agremiações políticas utilizaram regularmente a ilustração como forma de comunicação com os eleitores, não só nas campanhas políticas (saiba mais sobre os gibis eleitorais AQUI), mas também em seus veículos oficiais. O Diretório Regional do PT-SP, na edição de nº 200 do boletim Linha Direta (novembro de 1984) prestou uma homenagem aos seus militantes publicando oito charges de diferentes artistas que colaboravam com a publicação desde seu início; Jal, Ohi, Fausto, Bira, Luscar, Maringoni, Félix e Jean.
Este levantamento aqui apresentado, apesar de bastante superficial, comprova o quanto a ilustração, a charge e o cartum – e por extensão seus criadores – formam parte da história da retomada democrática através da imagem que dialoga diretamente com leitor facilitando, através do humor e do desenho, a compreensão da mensagem apresentada. Atualmente, com a crise vivida pelos jornais impressos quando vários fecharam as portas, outros diminuem a tiragem e os alternativos não mais existem, o espaço para o chargista praticamente sumiu da imprensa. Agora resta a publicação na internet, que, no entanto, não garante remuneração suficiente aos artistas, isto somado as ilegalidades da pirataria que ignora os direitos autorais e a ameaça da inteligência artificial generativa que oferece ilustrações sem custo (diga-se de passagem “roubada” dos artistas através do chamado “aprendizado de máquina”). Tempos difíceis!