Quando o humor gráfico frequenta a escola

Autor:
Redação

Seção:
Noticiário geral

Publicado em:
22 de Agosto de 2024

Tempo de leitura:
8 minutos

Betania Dantas lança livro sobre uso de humor gráfico nas escolas com ilustrações do irmão Bira

Quando o humor gráfico frequenta a escola

Por: Redação

Betania Dantas é professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), educadora com formação artística e acaba de lançar o livro Humor gráfico na alfabetização visual, obra que discute a importância do humor gráfico na educação como forma de auxiliar na interpretação e elaboração de imagens e tem a proposta de desenvolver a autonomia dos alunos e encorajar professores a aventurar-se no universo do desenho de humor em suas diferentes modalidades gráficas.

A autora é irmã do cartunista Bira Dantas, que desenha a capa da obra e colabora com caricaturas, charges e cartuns para ilustrar e exemplificar o texto..Com muitos exemplos, o livro contempla aspectos pedagógicos, estéticos e artísticos de forma articulada, sugerindo o compromisso da escola com o processo criativo e com a inserção do desenho de humor como importante elemento construtor de saberes e práticas. (um destes desenhos esta reproduzido aqui e pode ser ampliado com um clique)

A Revista Pirralha ouviu relatos da dupla sobre a obra, suas relações com os gibis e o humor em um depoimento exclusivo

Gibis na infância

Os irmãos Bira e Betania foram crianças na segunda metade do século XX onde a internet e o celular não tinham espaço, época no qual as brincadeiras fora de casa e os gibis (e a partir da popularização da TV também os desenhos animados) ocupavam espaço central na diversão das crianças. Bira, um pouco mais velho que sua irmã Betania, lembra que quando sua mãe o levava para tomar as vacinas obrigatórias ficava encantado com as figuras de Zé Colmeia e Fred Flintstone na parede da sala e “nem chorava com as picadas”.

Os irmãos dividem a lembrança da leitura das tirinhas dos jornais que seu pai trazia para casa, principalmente os suplementos de quadrinhos do Globo e do JB quando Betania “caçava as tirinhas”. O interesse de Bira por quadrinhos crescia dia a dia e o garoto, que desenhava no tempo vago, começou a colecionar os gibis de super-heróis e faroeste que ganhava dos irmãos mais velhos ou de amigos que não os guardavam e, após economizar e juntar algumas moedas, comprar suas revistinhas na banca.

"Um personagem marcante na minha infância foi o Superman pois a primeira revista que ganhei do meu irmão Clovinho foi a edição nº 25 da Ebal, de 1974. Outros que não esqueço são Homem Aranha, Flash Gordon, Asterix, Tereré, Príncipe Valente, Tarzan, Pinduca, Pafúncio, Marocas, Capitão Eco (Miguel Paiva), Turma do Pererê (Ziraldo) e do Lambe-lambe (Daniel Azulay)."
Bira Dantas

No entanto, como era visão comum à época, as mães tinham medo de que o hábito da leitura de gibis prejudicassem o desenvolvimento das crianças na escola, por isto Bira lia seus gibis no banheiro e os escondia no guarda-roupa. Deste período Betania guarda a lembrança de uma pequena travessura; “Sorrateiramente eu pegava alguns dos gibis que ele comprava escondido da minha mãe, tomando cuidado para devolver na mesma sequência porque ele ia descobrir se estivesse fora. Mas do nada comecei a desejar ser proprietária das HQs e passei a escrever nas capas “este gibi pertence a... e escrevia o meu nome”. Como ele ficou bravo!”. Outro momento que ela guarda na memória foi quando ganhou um concurso que tinha como prêmio, entre outras coisas, histórias em quadrinhos, “Naquele mês li gibi de trás pra frente e de frente pra trás”.

"Eu gostava da HQ da Luluzinha, depois da Turma da Mônica e do Recruta Zero. A Hanna Barbera na TV foi quem me apresentou ao mundo da imaginação, os(as) dubladores(as) brasileiros(as) eram ótimos(as): Turma do Manda Chuva, Barbapapa, Carangos e Motocas, Fantasminha Legal, Bob Pai e Bob Filho, O Urso do Cabelo Duro, Bacamarte e Chumbinho, Superamigos, Tutubarão, Cobrinha Azul e os Bananas Split e mais tarde a turma do Scoobydoo. A Hanna Barbera tinha algo da arte moderna com uns tipos diferentes da Disney. Eu achava a HQ da Disney mal-humorada, talvez pela pequena idade pois comecei a ler aos 3 anos, eu não gostava do Pato Donald, só falava em dinheiro, ouro. Não era um assunto que me interessava, procurava mais o nonsense e as fantasmagorias sendo desfeitas pela ciência em Scoobydoo."
Betania Dantas

Trabalhos conjuntos

Como professora Betania Dantas percebia que os alunos poderiam ter amplo desenvolvimento pela arte da HQ e animação e foi aprimorando as aulas, inclusive levando os alunos à exposições. A partir daí foi planejando novas formas de aprendizagem mais experimentais com a ideia de que todo mundo pode desenhar e não necessariamente ser artista

"Como eu venho de duas formações transdisciplinares que é o técnico em Educação e a Educação Artística, pensar em um tema proposto por Paulo Freire e ampliar a experiencia artística sempre foi um caminho possível. Nos anos 90 eu entrevistei mais de 30 cartunistas da lista ImagoDays durante a minha dissertação de mestrado. Eu tinha muito material que não incluí e nos eventos o pessoal pedia para eu publicar um livro sobre o assunto pois para quem mora em outros estados e no exterior fica difícil acessar estes materiais, então resolvi trabalhar sobre a experiência destas décadas e a Editora Contexto selecionou o meu manuscrito. O Bira era um dos cartunistas entrevistados e eu lhe encomendei as imagens, algumas, inclusive, ele já tinha."
Betania Dantas

Bira Dantas descreve a irmã como uma “pesquisadora e pensadora da Nona Arte”, detentora de erudição e de capacidade crítica notável, o que a levou a pesquisa nos campos do cartum, da charge e do humor gráfico e a realização deste livro. Ele conta que no início da internet (antes das redes sociais) o ilustrador da Folha de S. Paulo, Henrique Kipper, criou o grupo Imago Days que reunia cartunistas, quadrinhistas e ilustradores e, após entrar no grupo, convidou a irmã para participar também. “O contato dela com o pessoal das artes gráficas, salões de humor, lançou a semente do que viria a ser este livro”.

A família, profundamente envolvida com a arte do desenho, não tem planos para parcerias futuras mas Bira avisa que sua irmã não para e Betania comunica que está trabalhando em uma próxima obra e não descarta a participação do irmão.

Existe uma contradição na relação impressa X humor gráfico. As charges, cartuns e quadrinhos foram lançados por este meio, mantiveram leitores por décadas a fio e foram despejadas de suas residências. Os quadrinhos resistiram bravamente nas bancas de jornais até que elas praticamente desaparecessem. Hoje passaram a ser artigos de livrarias ou lojas especializadas. Apesar disso, acho que nunca se produziu tanta HQ no Brasil, mas para um público cada vez mais reduzido e elitizado que prefere os caros encadernados (pesados omnibus de até 400 páginas) aos baratos gibis de 36 ou 64 páginas
Bira Dantas

Devemos criar os leitores de papel

por Betania Dantas

A baixa leitura e muito consumo de TV e internet tem impactado não só o Brasil mas o mundo. Estudos sobre aprendizagem tem mostrado que a falta de experiências sensoriais como folhear um gibi ou um livro físico tem proporcionado menos conhecimento às crianças e jovens atrapalhando o desenvolvimento criativo e cognitivo, como diz o cientista Nicolelis sobre a supremacia do uso do computador e celular. Observo muitos alunos que só leem materiais físicos e escrevem em caderno com caneta e lápis.

O jornal com charges e tirinhas e a revista permaneceram necessários para construir uma inteligência tridimensional de memória espacial. Diminuição de leitores e a migração de uma parte para o digital impactou as editoras e livrarias e as bancas de jornal viraram uma loja de brinquedos. Os cartunistas atuam diretamente na imprensa e sofrem uma precarização trabalhista, têm problemas de profissionalização trabalhando em situações precárias, apenas aqueles reconhecidos conseguem condições melhores. Na minha obra trago essa discussão com os cartunistas para tratar sobre a hierarquia na arte. Cartunistas perseguidos por suas produções também são um problema.

Houve uma efervescência das editoras especializadas em HQ a partir de 2006 quando o MEC passou a enviar quadrinhos para as escolas, inclusive Haddad ganhou o prêmio HQMIX como ministro da educação, depois veio o golpe e isso arruinou a leitura no Brasil.

As políticas públicas e ações propostas por nós podem mudar a situação e cada publicação exige uma mediação para aprender a ler. A oferta repetida de um material vai criando uma memória de uso, eu cheguei a fazer hemeroteca com os alunos e recebia jornal do dia anterior, também fizemos assinatura de jornal para a escola, ensinava os alunos a ler jornal para entender por que a charge está na segunda página, conto sobre isso no livro. Tudo quando repetido vira hábito e isto é fantástico.

No Brasil, o estado que mais lê é o Rio de Janeiro e por isso a bienal do livro é sempre forte por lá e tem investimento. Precisamos de políticas públicas e um projeto via MEC para resgatar a impressão dos jornais e gibis, dar um apoio às editoras e formar leitores de papel. Ler jornal e HQ não é uma leitura fácil e o professor tem que se preparar para incluir esta prática na aula. Devemos criar o movimento leitores de papel!

FICHA TÉCNICA

  • Humor gráfico na alfabetização visual
  • Autoria: Betania Dantas
  • Editora: Contexto, 144 páginas