Cartuneando e quadrinhando em modo feminino

Autor:
Redação

Seção:
Memória

Publicado em:
4 de Março de 2024

Tempo de leitura:
5 minutos

Carla Guidaci, Liliana e Crau durante uum lançamento de As Periquitas (Foto: Crau, arquivo pessoal)

Cartuneando e quadrinhando em modo feminino

Por: Redação

Depoimento: Crau  - Maria Cláudia (*)

Talvez hoje eu seja, depois da Ciça, a segunda cartunista sobrevivente mais velha, pois a Cahu e a Mariza nos deixaram. No Bicho (1) - onde trabalhei - as meninas não apareciam na redação com desenhos debaixo do braço, à exceção da genial e profissionalíssima Mariza. Naquela época ainda tentavam fazer e publicar quadrinhos; a Lúcia, no Balão e a Patrícia, na Crás.

Eu achava que o espaço era livre, não importando se fosse homem ou mulher. Afinal havia a Luluzinha criada pela Marge e havia desenhistas mulheres na revista O Tico-Tico que eu “herdara” de uma prima crescida. Assim, me era indiferente a influência de homens ou mulheres. Se via algo que gostasse tentava fazer, não importando se quem o fizera fosse um homem. Mas com o tempo fui vendo que a gente era uma espécie de avis rara no métier.

Eu iniciei ainda amadora, estava mal saindo dos primeiros cadernos de desenho quando publiquei pela primeira vez. Foi um choque ver minha página, principalmente porque publicaram quase que mais fotogramas do meu rosto do que quadrinhos com meu trabalho. Aí já senti uma diferença no tratamento, pois se o editor acreditava estar me recebendo com grande carinho ou reverência (chame-se cavalheirismo, homismo, sei lá) a mim pareceu como sendo uma gigantesca exposição da pessoa Crau, que até então nem cogitava ser identificada necessariamente como homem ou mulher, me preocupava a importância da obra que poderia ou não corresponder.

Depois, tendo sido chamada a atuar diretamente na redação, tais medos se dissiparam e consegui dar conta das tarefas que me eram designadas, minha opinião e palpites eram considerados. Mas aconteceu uma gradativa debandada de colaboradores e finalmente do apoio financeiro da revista, o que a inviabilizou.

Aos trancos e barrancos, a quatro mãos, com muita criatividade e iniciativa chegamos ao número 8 da revista, ao fim do qual eu me desliguei em 1977 e voltei para o lugar de origem da minha família materna; Ilhabela. Antes participei de uma matéria com o José Mujica Marins (Zé do Caixão) e conseguido um roteiro seu, que foi ilustrado pelo Nico Rosso, a quem também visitamos. Essa matéria acabou saindo no número 9, quando eu já estava longe.

Fazer cartum e quadrinhos para mim resultava de uma inquietação, de um desejo de ver verdades serem desmascaradas, de mostrar o ridículo e a hipocrisia. A gente bebia nas páginas do Grillo, do Pasquim e do Balão, e tido contato com o trabalho de Quino, Laerte, Feiffer, Jaguar… Então só fazia sentido desenhar se tivesse o que criticar e quem quisesse publicar.

Surgem As Periquitas

Ausente dos grandes centros, não fiz uma trajetória conhecida daí para frente, trabalhei localmente mediante contrato com pequenas publicações e sob encomenda, quando isso foi possível. Com a constituição da grande família que fiz (sou mãe quatro vezes e duas vezes avó), a necessidade de ter um ganha-pão garantido fez meu tempo se tornar escasso e distante do propósito inicial.

Somente em 1995 retomei contato com alguns colegas e fiquei inquieta com o questionamento reiteradamente proposto “por que não há mulheres nessa profissão?” Daí encasquetei que tinha de fazer uma revista só para mostrar que havia mulheres cartuneando ou quadrinizando, pois eu, esporadicamente, havia conhecido algumas em eventos pela vida.

Quando As Periquitas finalmente se materializaram (é um número só mas eu gosto de falar no plural) eu nem estava mais atuando na área pois me encontrava envolvida em estudos agrários, especificamente a aquicultura. Aliás, foi o desenho de uma cartilha que me introduziu e me ligou à aquicultura. Por isso, em 2013-2014, não sabia exatamente o que vinham fazendo as mulheres –além das minhas colegas e de mim mesma – que só pensávamos em estágios, pesquisas, pós graduações e finalizar cada semestre da faculdade,.

Fazer As Periquitas foi um ato “político”, mas minha contribuição se deu na curadoria, edição de arte e produção. Eu nem tinha ideia sobre o que as mulheres falariam, eu queria saber o que estavam urdindo as cabeças-fêmeas naquela época. Tratava-se de dar espaço e aproveitar o espaço para desovar algumas produções artísticas, nem sabia onde isso podia dar, inclusive, não aceitei trabalhos que não trouxessem alguma reflexão.

Assim, no brotar dos movimentos identitárias, quase sem querer – sem esperar, na verdade – acabei dando voz ao que vinha emergindo com a entrevista de 18 páginas da Laerte, um verdadeiro curso sobre feminismo e gênero, e o nascimento de coletivos de mulheres que eu vim em seguida a conhecer.

Continuo pensando que os espaços devem estar abertos igualmente a todos os indivíduos (isto não é machismo, é um substantivo epiceno) de modo a que ideias floresçam sobre todos os aspectos que nos afetam enquanto sociedade e humanidade, e não necessariamente apenas as questões de gênero raça religião time de futebol etc. Mas quando me pedem para falar sobre o trabalho das mulheres eu só digo: publique-as, e então todos vão saber mais sobre os trabalhos das mulheres.

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(1) a primeira revista de cartuns e quadrinhos “de autor”, com rede de colaboradores e distribuição em nível nacional, foi editada no Rio entre 1975 e 1977

(*) Crau da Ilha, uma vez que mora em Ilhabela, é também a Crau do Bicho pois seu trabalho foi revelado na revista o Bicho de quadrinhos, humor e cartuns dos anos 1975-77.Trabalhou com charges em jornais locais do litoral de São Paulo e também fazendo quadrinhos institucionais para transferência de tecnologia de cultivos aquaáicos para  comunidades pesqueiras. Fundou e editou a revista As Periquitas, com colaborações das mais importantes cartunistas mulheres.