Autor:
Guto Camargo
Seção:
Ponto de vista
Publicado em:
29 de Dezembro de 2021
Tempo de leitura:
9 minutos
Greve de 1941 mostra lado sombrio da Disney
Por: Guto Camargo
As celebrações referentes ao cinquentenário da Disney World começaram em 1º de outubro; nesta data, em 1971, foi inaugurado em Orlando (Flórida – EUA) o Magic Kingdom, o parque temático onde fica localizado o castelo da Cinderela que se tornou – ao lado do camundongo Mickey – o símbolo do império Disney.
A festa adentrará o ano de 2022 com novas inaugurações e atrações, muitas inspiradas na saga Star Wars e no universo Marvel, duas “marcas” compradas pela Disney para aumentar um pouco mais o lucro da corporação.
Toda esta festança serve também para encobrir outra data – que a Disney faz questão de esquecer. Em 28 de maio de 1941 os trabalhadores dos estúdios declararam uma greve cuja consequência alteraria drasticamente o funcionamento da empresa criada por Walter Elias Disney e seu irmão Roy Oliver Disney.
No início dos anos 40 Disney já era visto como o estúdio de animação mais importante da América – não seria exagero dizer do mundo: em novembro 1928 havia lançado o primeiro desenho animado realmente sonorizado, Steamboat Willie (que também foi a estreia do ratinho Mickey); em 1932 recebe o Oscar por Silly Symphonies, Flowers and Trees – primeiro desenho animado colorido; Branca de Neve e os sete anões, primeiro longa-metragem de animação, é lançado em 1937 com enorme sucesso; em seguida surgem Pinóquio e Fantasia (ambos de 1940).
A partir deste ponto a trajetória do estúdio que vinha de vento em popa começa a fazer água. Em 1941 a animação do elefantinho Dumbo não consegue voar nos cinemas pois a II Guerra Mundial impede que o filme seja lançado na Europa, o que causa prejuízo ao estúdio. Pouco antes, Disney acabara de construir um novo estúdio e contraído um empréstimo milionário com o Bank of America, o qual estava tendo dificuldade em honrar pois a bilheteria dos últimos desenhos não haviam sido das melhores. Então Roy Disney, que cuidava da administração do estúdio enquanto o irmão era responsável pelas animações, começou a cortar custos.
Durante os anos de 1930 também havia uma grande agitação sindical em Hollywood, foram criados sindicatos de escritores, atores, editores, diretores e os animadores não ficaram de fora. Por anos os sindicatos vinham atuando para associar os trabalhadores dos estúdios de animação. Em maio de 1937 o estúdio Fleischer (Popeye) enfrentou uma greve de seis meses e a resposta da empresa foi fechar as instalações em Nova York e se mudar para Miami. Depois a mobilização chegou ao departamento de animação da Metro Goldwyn-Mayer (William Hanna & Joseph Barbera – Tom & Jerry) e Warner Bros (Pernalonga), então, a bola da vez passou a ser Walt Disney.
O principal nome por trás desta mobilização sindical era Herbert Sorrell (1897-1973); ex-boxeador, ele entrou para a indústria do cinema como pintor de cenários mas foi despedido da Universal pois era sindicalizado na Motion Picture Painters Union (Sindicato dos Pintores de Cinema). Este fato fez com que se dedicasse integralmente ao sindicalismo.
Devido as particularidades da legislação norte-americana é possível haver sindicatos por empresas – assim como mais de um por categoria – e aquele que tiver o maior número de sindicalizados entre os trabalhadores passa a representá-los oficialmente, o que dá margem a algumas disputas sindicais bastante duras. E de certa forma foi uma destas disputas que determinou o rumo da animação e do estúdio Disney.
A International Alliance of Theatrical Stage Employces – IATSE (Aliança Internacional dos Empregados do Teatro) estava agindo para estender sua base de atuação para a indústria do cinema. A IATSE, fundada em 1893, na década de 30 estava em poder da Máfia de Chicago e era comandada por George Browne, presidente, e seu braço direito Willie Bioff, que era ligado a Frank Nitti, o sucessor de Al Capone. Como não podia deixar de acontecer, nestas condições a IATSE fazia acordos espúrios com empresas, traficava influência e vendia greves para os estúdios.
Um dos grandes animadores da Disney, Art Babbitt, que seria uma das futuras lideranças da greve, tomou conhecimento do interesse da IATSE sobre os estúdios e, preocupado, falou com Roy Disney que por sua vez o encaminhou ao advogado Gunther Lessing que orientou a criação de uma entidade sindical própria para representar os empregados do estúdio, sindicalizar todos e barrar as pretensões da IATSE. Assim foi criada a Cartoonists Federation sob a presidência de Art Babbitt. Reconhecida oficialmente em 1939 apresentou uma lista de reivindicações sistematicamente negadas por Roy Disney que conseguiu que parte da diretoria renunciasse inviabilizando a existência da entidade.
ART BABBITT (1907-1992) - Considerado um dos maiores animadores da história se tornou o grande desafeto de Walt Disney. Em novembro de 1942 foi convocado pelos fuzileiros navais para lutar na II Guerra Mundial e quando voltou para os EUA saiu da Disney para trabalhar na United Productions of America (UPA), uma empresa inaugurada em 1941 por animadores demitidos durante a paralisação. A UPA se caracterizou por uma forma moderna de animação e dá início a uma verdadeira escola de desenhos animados na TV; seu estilo característico pode ser visto, por exemplo, em Mister Magoo, um dos maiores sucessos do estúdio.
Neste ínterim, outro animador, David Hilberman, passa a sindicalizar os trabalhadores do estúdio em nome da Screen Cartoonist's Guild - SCG (Associação dos Cartunistas da Tela), o sindicato era presidido pelo animador Bill Littlejohn, aliado de Herbert Sorrel. A SCG, uma vez obtida as assinaturas dos empregados procura a direção da empresa para negociar. A reação de Walt Disney foi chamar Art Babbitt para que retomasse a antiga Cartoonists Federation, o que ele se recusa a fazer e, mais que isto, se une a Dave Hilberman e termina por ser escolhido como representante do estúdio no sindicato para defender as reivindicações dos animadores.
Mas o bondoso Disney não desiste facilmente e resolve ele mesmo refundar a federação ordenando que os chefes de departamentos distribuam fichas de filiação aos trabalhadores. Sorrel, que a esta altura comandava a Conferência dos Sindicatos de Estúdios (CSU), união de 10 entidades da área do cinema, entra com uma ação judicial alegando que seu sindicato já representa os trabalhadores pois têm as fichas de filiação e que se trata de uma manobra pois a federação montada às pressas seria, na verdade, um sindicato comandado pela empresa. Em maio a Nacional Labor Relations Board, órgão encarregado das relações de trabalho nos EUA, reconheceu a SCG como representante dos empregados em detrimento do sindicato de fachada montado por Disney.
DAVID HILBERMAN (1911-2007) - Única liderança grevista ligada ao Partido Comunista (chegou a estudar direção de arte em Moscou) sai dos estúdios Disney e funda a United Productions of America (UPA). Acusado por Walt Disney de ser responsável direto pela greve foi uma das vítimas da caça ás bruxas no período macartista sendo obrigado a fechar o estúdio que mantinha em Nova York (Tempo Productions, um dos pioneiros em animação comercial para TV) e mudar-se para a Inglaterra em 1952. O animador só voltou aos EUA na década de 1960 quando passou a trabalhar na Hanna-Barbera.
Apesar de obrigado a reconhecer que o SCG era o legítimo representante dos trabalhadores, Disney tenta uma última cartada; encerra a antiga federação, cria a Society of Screen Cartoonists e propõe uma votação secreta entre os trabalhadores para escolher qual delas representa o estúdio. Toda esta artimanha é atribuída ao advogado Gunther Lessing que inicialmente havia tentado cooptar Art Babbitt para fundar a federação pelega.
A SCG, oficialmente reconhecida, não concorda com a votação pois a considera mais uma manobra diversionista da empresa. A resposta de Disney foi a demissão de 20 pessoas, entre eles Art Babbitt, representante do sindicato. A SCG pede para a empresa resolver o impasse em 36 horas ou seria decretada greve (também há uma versão “chapa branca” que afirma que Babbitt pedira demissão mas que este fato fora escondido e manipulado pelo sindicato para convulsionar a empresa e preparar a greve).
A verdade é que a condição de trabalho no estúdio não era das melhores; havia grandes diferenças salariais entre cargos, jornadas longas de seis dias por semana, uma política de bônus e privilégios para poucos, além do fato de os nomes dos artistas envolvidos na produção não aparecerem nos créditos com queixas sobre o estilo centralizador e autoritário de Disney. Enfim, havia um claro descontentamento da maioria em relação à empresa e o inevitável acontece. É claro que o empresário Walt não concorda com esta leitura e atribui tudo a influência dos comunistas. O Partido Comunista dos Estados Unidos da América (CPUSA, na sigla em inglês) naturalmente apoiava os sindicatos, o que, de certa forma, acumulou lenha para a fogueira da caça às bruxas que incendiou o país depois da II Guerra Mundial e mais fortemente na década de 1950. Episódio este que contou com a ativa colaboração de Walt Disney como informante do FBI.
Em 28 de maio de 1941 a greve é decretada e os piquetes têm início no dia seguinte. Assim começa a greve que mudaria a história da animação nos EUA.
Referências
Livros:
O mundo de Disney. Álvaro de Moya, Geração Editorial.
Walt Disney; o príncipe sombrio de Hollywood. Marc Eliot, Marco Zero.
Walt Disney; o triunfo da imaginação americana. Neal Gabler, Novo Século Editora.
Internet:
Blog de Harvey Deneroff - “It’s Not Cricket to Pass a Picket”– The Disney Strike 70 Years Later
Prop Agenda (blog de Eric Hart) - A brief history of IATSE
Babbitblog - Disney and the Mob: Willie Bioff
Animation World Network - The Disney Strike de 1941: How It Changed Animation & Comics
Cartoon Brew. - The Disney Artists’ Strike of 1941 Changed Animation Forever — And For The Better e RIP, David Hilberman
Jacobin - 80 Years Ago Today, Disney Animation Workers Went on Strike
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As fotos que ilustram esta matéria foram retiradas dos sites acima