O capitalismo mágico de Tio Patinhas

Autor:
Guto Camargo

Seção:
Ponto de vista

Publicado em:
19 de Julho de 2023

Tempo de leitura:
7 minutos

A aparição do nome de Tio Tatinhas na capa do gubi do Pato Donald em 1952 e a primeira da sua revista própria, de 1953

O capitalismo mágico de Tio Patinhas

Por: Guto Camargo

Os leitores esclarecidos de quadrinhos sabem que o Tio Patinhas não foi criado por Walt Disney mas sim por Carl Barks, que era contratado pela editora Dell Comics para fazer os gibis dos personagens do estúdio de animação que, por sua vez, era focado no cinema e não nas HQs. Assim, Barks criou o Tio Patinhas (Scrooge McDuck) como coadjuvante para uma história do Pato Donald.

Tudo começou na revista Four Color, nº 178 quando os editores encomendaram uma história especial com tema natalino para o final do  ano de 1947. O pato milionário foi inspirado em um conto bastante conhecido escrito por Charles Dickens (1812 - 1870) em 1843; A Christmas Carol (traduzido no Brasil como Um Conto de Natal). A história do velho avarento Ebnezer Scrooge, a fonte de inspiração do nosso Tio Patinhas, havia sido filmada em 1938 pela Metro-Goldwyn-Mayer com relativo sucesso (futuramente seria muito reprisado na época natalina com o surgimento da TV e refilmado outras vezes) e também foi sucesso em uma peça de rádio teatro na voz de Lionel  Barrymore (1878 - 1954).

A estreia do pato mais rico e mais pão-duro de Patópolis se dá, portanto, na história Natal nas montanhas (Christmas on Bear Mountain) quando o Tio Patinhas, mal humorado e antipático, e que ainda por cima odiava o Natal (ao lado a primeira versão do Tio Patinhas), resolve testar a coragem de seu sobrinho e lhe envia para uma cabana nas montanhas onde uma mamãe urso resolve proteger seu filhote que se envolve nas trapalhadas de Donald. Em junho de 1948, na história O segredo do castelo, Tio Patinhas aparece pela segunda vez dando o motivo para que Donald e os sobrinhos embarquem em uma aventura na Escócia em busca de um tesouro do velho milionário.

O sucesso do Tio Patinhas fez com que a Dell Comics encomendasse novas histórias com ele e até chegou a colocar seu nome em destaque na capa da edição nº 386 (em 1952) e depois em outras duas ao longo de 1953 (números 456 e 495) para finalmente lançar uma revista própria do personagem em dezembro daquele ano, O curioso é que o novo gibi chegou às bancas com o número quatro na capa, ou seja, as três vezes em que o Tio Patinhas foi capa da revista do Donald contaram como sendo suas primeiras edições. O resultado desta numeração maluca é que o Tio Patinhas ganhou sua revista própria ao longo de 1953, portanto, 70 anos atrás, conquistando um lugar de honra no universo Disney.

Um símbolo capitalista

No início Tio Patinhas foi criado por Barks para representar o poder econômico capitalista dos EUA, mas o que pouco se dão conta é que a visão de Barks sobre a dominação econômica exercida pelo milionário sobre a cidade de Patópolis, quando surgiu em 1947, tinha sua dose de crítica social. Inicialmente Tio Patinhas não era uma personagem simpática, pelo contrário, sua imagem era a de um velhinho ganancioso e explorador. Em uma história de 1951 (Walt Disney's Comics and Stories, 125) Tio Patinhas é um agiota que, devido a uma dívida de um centavo, obriga Donald a cobrar uma série outros devedores, inclusive uma lavadeira pobre e desesperada que deve uma mensalidade da máquina de lavar que usa para ganhar o sustento da família, a qual, impiedosamente, Tio Patinhas manda Donald recolher. Na edição de janeiro de 1952 de Donald Duck One Shot o velho pão-duro se recusa a ajudar os escoteiros mirins a colaborar com a vaquinha que estão fazendo para ajudar as crianças pobres no Natal.

Mas a partir de 1954 em seu gibi próprio o pato foi ficando cada vez mais "bonzinho" e virou herói. Barks admitiu que esta medida foi a forma que encontrou para escapar de uma possível censura da editora que impunha uma série de regras comportamentais e morais aos personagens dos quadrinhos. Lembremos que a América vivia em plena caça às bruxas e durante a vigência do Comics Code, que a Dell Comics não havia aderido pois mantinha seu próprio sistema de controle para manter seus gibis adequados para as famílias e as crianças.

De qualquer forma, Barks teria admitido em uma entrevista que Tio Patinhas fora baseado em diversos milionários americanos que "tiraram suas fortunas de estradas de ferro e minas sendo só um pouco sem escrúpulos nas maneiras com que eliminaram os competidores", e ficaram conhecidos como "Barões ladrões" (1). Mas, mesmo assim, afirma em outra entrevista, que "o Tio Patinhas  conseguiu a maior parte de seu dinheiro naqueles dias antes do mundo ficar tão cheio de gente, nos dias em que você poderia sair pelas colinas e encontrar ouro". Desta forma Tio Patinhas se tornou um típico pioneiro inserido no mito americano daquele que faz fortuna com o esforço próprio.seguindo à risca a ética capitalista da livre competição.

Esta versão tornou sua forma definitiva com a história de 1953, Em busca do Ouro (Back to the Klondike, no original) onde ele conhece Dora Cintilante em um saloon do velho oeste em uma trama que sugere ter sido ela o grande amor da vida do pato. De qualquer forma, Dora Cintilante não seria muito explorada por Barks que a apresenta novamente somente em 1962 quando Tio Patinhas retorna a região de Klondike e a reencontra, mas neste momento Barks estava perto de se aposentar (ele deixa a editora em 1966) e a sua fase como criador já não é das melhores.

No entanto, permanece a contradição na narrativa entre a fortuna honesta e a exploração do trabalho alheio representado pelos centavos com que Tio Patinhas  paga os serviços prestados a ele pelos seus sobrinhos, principalmente Donald, o eterno explorado e vítima de circunstâncias adversas. Esta ambiguidade seria de certa forma resolvida pela aparição da moeda número Um em 1961, que se torna o amuleto mágico responsável pela fortuna de Tio Patinhas. A partir de então, mesmo que não tenha sido esta a intenção inicial de Barks que chegou a criticar a solução que ele mesmo criou, a fortuna do Tio Patinhas deixa de ser explicada como resultado da exploração capitalista e financeira como aparece no final dos anos de 1940, tampouco a partir do trabalho duro como explorador de tesouros contada nas histórias da década de 1950 para ser apresentada nos anos sessenta principalmente como um lance de sorte resultado da posse de um amuleto. A exploração de Donald por parte de seu tio se torna folclórica e sem qualquer pretensão crítica pois agora não se trata de uma relação capital trabalho, mas sim uma questão familiar, portanto, pessoal. Desta maneira é eliminada qualquer traço de inconformismo em relação às forças capitalistas nos gibis de Barks.

É óbvio que Barks nunca foi um crítico do capitalismo -- muito menos Walt Disney para quem ele trabalhava de forma indireta -- mas a formação do desenhista foi típica de um americano simples criado em uma fazenda do Oregon onde ouvia as histórias de pioneiros, vaqueiros e garimpeiros que trouxeram o desenvolvimento para aquela terra selvagem. Enfim, um cidadão que acredita no "americanismo", aquele conjunto de valores conservadores calcado nos mais puros ideais do velho liberalismo e que nunca se adaptou plenamente ao moderno mundo do capital financeiro, industrial e especulativo. Esta crença no homem simples, trabalhador e honesto do oeste americano é abalada pela realidade do capital monopolista e o resultado é um exército de céticos que deixam de acreditar no "sistema" do Estado, cujos integrantes e se tornam a grande base eleitoral da direita populista dos EUA até nos dias atuais.

Aliás, é este universo idealizado onde o capital se reproduz como por mágica e o trabalho humano é secundário que Ariel Dorfmann e Armand Mattelart usam de base para sua análise no livro Para ler o Pato Donald, comunicação de massa e colonialismo lançado em 1971, mas, isto já é outro capítulo.

,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,

(1) As declarações publicadas neste texto foram retiradas de Carl Barks e os quadrinhos Disney de Thomas Andrae, editora Criativo