Uma visão "sensível" sobre a caricatura

Autor:
Guto Camargo

Seção:
Ponto de vista

Publicado em:
9 de Agosto de 2023

Tempo de leitura:
8 minutos

A charge que custou o emprego do ilustrador português António. Moreira Antunes

Uma visão "sensível" sobre a caricatura

Por: Guto Camargo

Quem acompanha a crítica literária certamente já leu algo sobre a prática das editoras onde “leitores sensíveis” buscam identificar nas obras passagens que possam ser vistas como preconceituosas, culturalmente polêmicas, ofensivas para as minorias ou simplesmente contenham linguagem inadequada. Até a pouco tempo as editoras recorriam a esta prática quando se tratava de textos inéditos ou de autores estreantes, situações que poderiam obviamente serem acordadas com o autor, mas nos últimos anos livros já publicados, inclusive clássicos, estão passando por este processo de revisão. No Brasil o caso mais conhecido é o de Monteiro Lobato que teve nas edições recentes os termos considerados inadequados ou racistas com que alguns personagens se referem a tia Anastácia devidamente expurgados.

Se este procedimento estava confinado ao texto literário agora os “leitores sensíveis” passam a agir também sobre as charges. Em 2019 o chargista português, António Moreira Antunes (foto em destaque), não só perdeu o emprego na edição internacional do The New York Times como a empresa anunciou que, a partir de 1 de julho daquele ano, o jornal não mais publicaria charges na edição internacional. O motivo alegado foi que o desenho era antissemita pois caracterizava Trump como um judeu cego sendo guiado por um cão com a cara de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel (charge reproduzida na abertura do texto). Para muitos, autores e leitores, esta prática se configura simplesmente como censura.

Patrick Chappate, um chargista que também trabalhava no The New York Times escreveu no seu blogue que a decisão interfere "também com jornalismo e com a opinião em geral" e que se vive "num mundo em que a população moralista se junta nas redes sociais e ergue-se como uma tempestade, atacando as redações”. O cartunista francês Plantu (Le Monde) saiu em defesa do colega e disse "Humor e imagens perturbadoras fazem parte das nossas democracias". Outro artista português, António Maia, perguntado em uma entrevista sobre o impacto do politicamente correto sobre o cartum nos dias de hoje respondeu simplesmente “Exagera-se”. (1)

E a “leitura sensível” das imagens também chegou ao Brasil. Antes do jogo entre Argentina e França (18 de dezembro de 2022) na final da Copa do Mundo o grupo Jornalista Livres publicou na internet charges dos jogadores MBappé e Messi, estrelas das duas seleções, que foram denunciados por alguns leitores como “forma racista e transfóbica” e imediatamente retirado do ar “assim que o grupo de editores teve ciência” e emitido uma nota pública que considerou o episódio lamentável e atribuiu o erro ao “colaborador” (o caso do desenhista português foi atribuído a um descuido do editor) e as imagens excluídas (2). Obviamente o racismo, homofobia, machismo são males que precisam ser definitivamente eliminados para que possamos ser chamados de civilizados, mas medidas radicais como estas merecem algumas reflexões.

Inicialmente é preciso esclarecer que uma das publicações não era charge, mas sim caricatura. Esta diferenciação é importante pois determina a natureza diversa das obras. Enquanto a charge é um comentário gráfico e humorístico de um fato específico uma caricatura não se limita a uma ocorrência determinada. Um jogo de futebol pode ser objeto de uma charge enquanto as caricaturas dos jogadores podem ser usados tanto para ilustrar o jogo em si quanto a festa de aniversário de um deles. Uma caricatura apresenta uma narrativa menos atrelada a um fato e tem o aspecto estético mais elaborado, sendo sua característica principal o exagero e a ênfase nos traços físicos do retratado. Esta diferença é que permite à caricatura ser usada em diferentes contextos enquanto a charge fica presa ao acontecimento retratado.

A segunda obra já é uma charge clássica; nela Messi dança um tango com Mbappé que está caracterizado como a dançarina, o que poderia motivar a denúncia de machismo e homofobia. Por ser tratar de uma charge ela é muito mais carregada de significados pois faz parte de uma narrativa clara e definida que, na maioria dos casos, identifica claramente a intenção política do autor. A charge em questão talvez seja vista por alguns como problemática pela caracterização feminina e secundária dada a Mbappé, um homem negro. No entanto, se olharmos sob o ponto de vista da cultura musical argentina podemos enxergar outras nuances pois no tango é o homem que conduz a dança sendo que à mulher cabe acompanhar seus passos. Neste contexto uma leitura perfeitamente  cabível é que o chargista, conhecedor de toda a mitologia do tango, se aproveitou destas entrelinhas para dizer metaforicamente que Messi (Argentina) sobrepujou Mbappé (França) pois venceu a partida.

Toda obra artística, seja charge, caricatura ou o teto da Capela Sistina (e aqui não cabe nenhuma comparação entre criadores distintos) é objeto de uma “leitura” (interpretação) por parte de quem a vê, sendo o “leitor”, por sua vez, influenciado pelas condições sociais em que está inserido. A representação gráfica de um jogador negro ao lado de um branco pode, logicamente, suscitar “leituras raciais” diferenciadas por parte de públicos distintos em diferentes situações.

Estereótipo e preconceito

Toda cultura cria, em relação às outras, uma imagem típica (na verdade mais de uma) para defini-las e representá-las e estas imagens formam os estereótipos que são usados de maneira negativa ou não. A comunicação de massa as utiliza largamente, tanto no humor quanto no drama ou em peças publicitárias. Se quero representar um francês eu o mostro bebendo vinho, já os alemães eu apresento com uma grande caneca de cerveja; são os estereótipos culturais que ditam estas escolhas, o mesmo vale para o tango como símbolo da Argentina e o samba para o Brasil.

Em relação aos povos de origem africana a cultura ocidental escolheu como estereótipos além da cor da pele, o cabelo e os lábios. Como o cabelo “pixaim”, chamado – pelos racistas – de “ruim”, foi ressignificado pelos ativistas negros a partir do movimento Black Power e se transformou em símbolo da negritude e motivo de orgulho, resta aos racistas exteriorizar a sua crença na inferioridade dos africanos depreciando a representação dos lábios carnudos criando uma “narrativa” que associa os lábios exagerados de uma caricatura a imagem de um macaco (que sabemos, é uma das ofensas raciais mais comumente dirigida aos negros) o que a tornaria, portanto, racista aos olhos de quem assim a vê - ou assim deseja ver.

Por sua vez, a caricatura do Messi também pode ser vista como ofensiva se entendemos que o nariz adunco desenhado o aproxima da imagem de uma ave de rapina, animal historicamente associada ao povo judeu que, segundo uma visão preconceituosa bastante difundida, é composto por uma “raça” de mercadores ladrões; estaria o artista, por acaso, chamando o atleta de mercenário que só atua por dinheiro? (acusação que pesa sobre muitos jogadores ). Sabemos que no Brasil o antissemitismo não tem a mesma amplitude e centralidade que a escravidão, o que faz o preconceito contra judeus menos visível entre nós, diferentemente do que ocorre na Europa, mas ele também existe (só para lembrar, o nosso chargista português teve problema devido a uma leitura nestes moldes).

É preciso ter em mente que a caricatura não se propõe a ser uma representação do real, mas sim um simulacro irônico (no caso do cartum, a situação real é subvertida a partir de um ponto de vista político, seja à direita ou à esquerda) e o trabalho do caricaturista se alicerça no exagero dos atributos físicos. O detalhe ressaltado em uma caricatura, boca, olho, nariz, orelha ou qualquer outro, tem o objetivo de caracterizar de maneira irônica o retratado a partir de uma escolha estética, sem necessariamente, um juízo moral (o que não quer dizer que o caricaturista não tenha uma visão de mundo). No entanto, uma vez terminada a obra ela passa a ser apreciada em diferentes situações que não mais estão sob o controle do seu criador, vem daí a avaliação de que uma caricatura de Mbappé não é em si racista, mas que pode vir a ser racista a depender da interpretação do espectador (no caso em questão o desenhista já confidenciou que nunca imaginou tal interpretação de sua obra).

Se alguma lição resulta destes episódios é a de que é necessário educar o olho e o cérebro para escapar das “lacrações” simplórias da internet e da pressão de grupos profundamente “sensíveis” que, muitas vezes, não compreendem o sentido de uma charge crítica (ou texto literário)  inserido em seu contexto histórico e social e na prática transformam a ação que entendem meritória em odiosa censura baseada em uma leitura reducionista sobre o humor gráfico,

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(1) As declarações dos artistas e as informações apresentadas foram retiradas de reportagens do site do jornal Correio da Manhã, de Portugal.

(2) A posição dos Jornalistas Livres foi extraída de suas publicações na internet que, no entanto, omitiu o nome dos artistas, motivo pelo qual também o faço aqui.