Andanças da 'Crauiçara' na área musical e poética

Autor:
Colaboradores

Seção:
Ponto de vista

Publicado em:
28 de Dezembro de 2023

Tempo de leitura:
6 minutos

Charge "Um choro alegre" de Seth (Álvaro Martins, 1891-1949) publicado no livro Exposição - Desenhos a Pena de Seth, de 1937

Andanças da 'Crauiçara' na área musical e poética

Por: Colaboradores

A Crau desenhista, Crau do Bicho, das Periquitas e da Pirralha carrega dentro de si a Crau do Bandolim e para ela hoje o desenho é uma atividade esporádica pois se envolveu com a música e a poesia, compondo versinhos de pé quebrado e versões em português de músicas dos Beatles. Para este depoimento exclusivo feito à Revista Pirralha Crau apresentou uma letra que fez para a composição Receita de Samba, do Jacob do Bandolim, para saudar a boa música e protestar contra o mau gosto musical.

Autoria: Crau da Ilha (Maria Cláudia)

Eu tive por décadas um caso intermitente com a música, desde os sete anos de idade quando ganhei meu primeiro violão e aos 15, cheguei a ter aulas de violão com a Elza, esposa do Paulinho Nogueira. Lá pelos meus doze anos, enquanto minhas colegas de ginásio só ouviam música americana, eu já frequentava as rodas de samba promovidas pelo maior boêmio que Ilhabela e o mundo já conheceram, o Pedrinho do Pandeiro (Pedro Paulo Fazzini), primo da minha mãe. Caiçara de Ilhabela, ele transitava igualmente tanto no meio dos pescadores que faziam o legítimo samba popular, como no meio artístico da noite paulistana ou na sociedade classe média alta, atraindo frequentemente esses públicos a um só lugar, que podia ser a Barraquinha do Samba, reduto tradicional caiçara, a casa noturna Jogral em São Paulo, ou em uma festa de debutante nos Jardins.

Em 1975 fui para o Rio de Janeiro. No Rio, após o expediente na revista O Bicho, do Fortuna, pude assistir aos mais notáveis sambistas da Velha Guarda. Mas os tempos ficaram duros para mim por lá e me mandei para Ilhabela em 1977, terra de origem da família da minha mãe.

Na ilha, por essa época, a folclorista Iracema França Lopes Corrêa (minha tia Dedé) registrava constantemente as manifestações caiçaras, como a congada, o caiapô, as cantorias de reis, os fandangos, além de lendas, mitos, receitas de ervas etc. Comigo por perto, começou a me chamar para ajudá-la a fazer os registros. Foi assim que entrei em contato com os mais autênticos músicos de raiz popular. Não por acaso, eles também faziam e compunham samba, como os irmãos Felinho, Maneco e Eliseu.

A partir do ano 2000 me envolvi de corpo e alma com Eliseu, e passei a fazer parte do seu grupo, os Caiçaras do Ritmo. Motivada pela necessidade de registrar aqueles sambas autorais até então só veiculados oralmente, botei-me a aprender pra valer teoria musical e bandolim, e assim caí no choro. Ouso manusear esse instrumento há pelo menos 19 anos. Por isso digo que minha relação com a música dali para cá deixou de ser casual, intermitente, e passou a ser uma relação mais estável.

A CULTURA DO SAMBA

Penso que ser sambista não é só ter um bom ritmo. Ser sambista é carregar uma cultura, transmitir valores, principalmente de vida, de alegria, de boa convivência, de fé e de solidariedade. Se você prefere defender as causas da ambição, do egoísmo, do ódio, da maldade pode até ter a melhor bateria mas não deveria ser chamado de sambista.

Já dizia o Bezerra da Silva que malandragem, no samba, quer dizer inteligência. O samba perpassa gerações. Ivone Lara, Cartola, Roberto Ribeiro, Dona Inah, Felinho e Eliseu: esse é o destino que Deus me deu. Levar a voz do amor, sem pieguice, sem falsa fé. Chorinho é o recado do Brasil pela paz. Penso que onde se ouve um chorinho ninguém tem vontade de pegar em armas.

Quanto a versejar, é um hábito ainda mais antigo, herança de família. Minha avó paterna fazia versos de pé quebrado e tão logo comecei a ler, ela me instigou a escrever meus próprios versos. Meu pai também se aventurou pela poesia, minha mãe e minhas duas filhas também já produziram algo belo neste ramo. Sempre fizemos isso num âmbito muito pequeno, na família, na escola, entre amigos ou no máximo em saraus ou concursos locais onde chegamos a ganhar alguns prêmios.

Às vezes faço traduções de músicas dos Beatles que mantêm o significado original, respeitando métrica e rima. Estou cantarolando e vem à mente a versão (ou o “versão”) em português. Versejar tem sido, ao longo do tempo, bastante natural na minha vida desde aquele primeiro estímulo da minha avó.

Havia um caiçara aqui na ilha que só falava “versando”. Era um repentista ambulante. Lá vinha ele pela rua, cumprimentava: “Fala prima!”, e já saía "versando" o cumprimento. E eu respondia em verso:

Lá vem o querido

Messias Margarido

caiçara da bica,

que só fala em rima!

O pescador versador

que toca cuíca

e me chama de prima

ENSINANDO A RECEITA

A maioria dos choros nasce instrumental, sem letra, depois é que aparece alguém e coloca as palavras. Coisa que nem todos os instrumentistas apreciam, aliás. Meu atrevimento em letrar um choro/samba de Jacob do Bandolim brotou, não escolhi, aconteceu, nem sei se ele aprovaria. É que, quando eu ouvia “Receita de samba” ficava imaginando quais ingredientes, quais recomendações Jacob pretendia passar, ainda que de forma instrumental, nesse seu conhecido choro.

Em frente a minha casa tem uma praça onde volta e meia baixa um pessoal que não faz samba, faz barulho – o ritmo não é bom, as letras paupérrimas, o som em volume estrondoso e distorcido, instrumentos desafinados, e em que a voz do puxador amplificada em último grau faz sua catarse arrogante.

Lembrando da Receita de Samba do Jacob, me atrevi a escrever essa letra dedicada a pessoas nefastas que usam dinheiro público para promover esse tipo de “desArte”. E também a outras, como as que uma vez cobraram pelas fantasias uma alta quantia de veranistas que queriam desfilar numa escola recém-criada e, de posse da bolada, se mandaram para o exterior deixando os aspirantes a passistas a ver navios.

Não faço letra de choro porque dá na telha, mas por necessidade de me colocar frente a situações como estas.

Receita de samba

  • Música: Jacob do Bandolim (1918 - 1969)
  • Letra: Maria Cláudia (Crau)

Pra se fazer um bom prato o tempero é que dá sabor

Pra se fazer um bom samba há que ter muita ginga e amor

Vou tirar mais um samba

E fazer deste samba

A receita de samba para você aprender

E poder se dar valor

Tem um segredo no samba

É não tocar atravessado

Tem outros truques de breque de bossa de tom

Tem sincopado direto

Se não fizer não dá certo

E tem volume correto

Se perturbar não está bom.

Você que se acha sambista

porque sai na pista

uma vez por ano

Para arrancar de turista

uma bolada maciça

por um pedaço de pano

Pois já causou muito dano

Aos ouvidos humanos

Essa sua impostura

Você faz do samba

Plataforma insana

A ninguém mais engana

Ninguém mais te atura