Homenagem ao cartunista e parceiro Fortuna

Autor:
Redação

Seção:
Memória

Publicado em:
31 de Julho de 2022

Tempo de leitura:
8 minutos

Homenagem ao cartunista e parceiro Fortuna

Por: Redação

Reginaldo José Azevedo Fortuna, o Fortuna, nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 21 de agosto de 1931 e faleceu em São Paulo, em 5 de setembro de 1994. Portanto, o cartunista completaria 91 anos neste mês. Infelizmente, a pandemia e o distanciamento social impediram que, em 2021, se celebrasse condignamente seus 90 anos. Agora a Revista Pirralha homenageia o mestre publicando um depoimento exclusivo de Maria Cláudia, ou melhor, a Crau d'O Bicho, Crau da Ilha, ou Crau da Pirralha, que conviveu com Fortuna na histórica experiência de publicar a revista em quadrinhos O Bicho - “a primeira revista de cartuns e quadrinhos não enlatados com distribuição nacional”. Leia e aprecie!

Trabalhando e aprendendo com o mestre

Texto: Maria Cláudia (Crau)

Tive a felicidade de conhecer o Fortuna quando tinha apenas 18 anos. Era 1974 e eu estava começando a expressar graficamente algumas ideias. Eu voltava de uma viagem mochileira de trem, ônibus e caminhão cortando o país pela recém-aberta Belém Brasília. Na mochila, duas mudas de roupa, umas canetinhas e um caderninho de desenho onde fazia uns chistes ilustrando impressões e pensamentos de viagem. Ao passar pelo Rio, quis levar os esboços para o Pasquim.

Era fim de julho. Fui recebida pelo Nani, que me aconselhou a fazer a arte final dos meus apontamentos. Comprei papel e nanquim e refiz os desenhos. Na volta ao Pasquim fui sabatinada em uma roda com o Nani, o Ziraldo, o Jaguar e o Reinaldo; eles ficaram bastante curiosos com aquela pivete que se atrevia a mostrar uns rabiscos. Por fim, o Ziraldo disse que eu tinha que assinar os desenhos para criar uma marca (eu tinha vergonha de assinar) e concluíram que meu trabalho tinha mais a ver com O Bicho, revista que o Fortuna estava começando a editar, e sugeriram que o procurasse em São Paulo.

"Meu primeiro contato com a obra do Fortuna foi através do livro Dez em Humor, em que ele publicou apenas fotos intrigantes de seus óculos e mãos. E também na revista A Cigarra, que olhava na casa da minha tia desde criança. Menos de dez anos depois, estava vivendo esse intenso aprendizado quando acompanhava o seu processo de trabalho, ou ele falava sobre a história política do Brasil e discutíamos ideias e percepções." Crau (em foto da época em que conheceu o Fortuna)

Arte na cidade

Procurei o Fortuna não sem antes desenvolver várias peripécias na urbe. Estas peripécias eram uma espécie de “arte de rua”, intervenções que não raro terminavam na delegacia... Eu fazia tudo sozinha, imbuída da “missão” de despertar a revolução fazendo arte – no caso, poses estranhas junto a equipamentos urbanos ou inquisições non-sense aos passantes – com o propósito de "épater le bourgeois" ou despertar a alma revolucionária dos trabalhadores. Era a única responsável, mas arriscar-se assim em plena era ditatorial era coisa de maluco de pedra; aliás, em uma ocasião, por obra e graça de um analista sem senso de humor, terminei a aventura num sanatório. Rapidamente descobri como agradar o elenco lá dentro e em uma semana fui solta por bom comportamento.

Entre os meses de agosto e setembro estive envolvida nestas “performances”. Em um destes “comicomícios”, minha pasta de desenhos foi confiscada pela polícia. Felizmente, um mês depois, recebi de volta o material intacto, pelo correio, enviado por alguma repartição da polícia federal.

Me armei de coragem e, em outubro, fui à editora Abril procurar o Fortuna, que então fazia as capas da revista Veja. Ele olhou atentamente meus cartuns e por cima dos óculos me fitou e disse: “Tem a ver... Vou publicar!”. Entre os mais de cinco nomes que assinava com letra minúscula (crau, macau, emecê, macádia, calaudia, etc.) ele escolheu crau, um apelido de família que na época tinha umas conotações esquisitas. Deixei a pasta com alguns originais que ele escolheu e saí feliz da vida.

Era a revanche contra o sistema que me reprimia e prendia e a generosidade de um grande mestre em abrir espaço para uma novata mal saída do caderno de desenho.

Dias depois ele me ligou e disse que queria fazer uma apresentação especial sobre mim na revista, já que eu era estreante. Como eu possuía uma câmera Single 8 ele propôs fazer uns takes no parque Ibirapuera. Assim, de desenhista, de repente paguei de modelo, muito sem jeito, aliás. Depois me convidou para jantar e, nesse esforço de liberação – aceitei.

Surge o Bicho

Minha estreia aconteceu n' O Bicho nº 1 em página dupla!

Agora imaginem essa guria aparvalhada, depois de uma passagem pela delegacia outra por um sanatório, como se sentiu envergonhada por ser a única colaboradora a ter a cara estampada na revista! Todos sabem que cartunista usa pseudônimo, não espera a fama desse jeito.

Como saíram mais dois números da revista sem trabalho algum meu, encasquetei que ele só me havia publicado por cortesia. Uma grande bobagem minha, pois, conforme me disse quando já convivíamos no dia a dia da redação, ele não arriscaria sua reputação de editor publicando qualquer lixo. Mas o bloqueio já estava instalado.

Foi quando encontrei, na rua Augusta, o Laerte (no masculino, à época), que quis saber dos meus desenhos e eu disse que não desenhava mais, tava envergonhada. Passado algum tempo recebi pelo correio um exemplar d'O Bicho nº 4 (capa amarela, do Vão Gôgo) com uma dedicatória:

"Crau, aí vai o Bicho 4 com teu cartum. Fortuna."

Isto destampou minha cabeça e já fui pegando canetinha para fazer mais uns riscos. Não demorou e recebi uma ligação do Laerte que estava no Rio e passou o telefone para o Fortuna que foi logo perguntando se recebi o Bicho nº 4. Foi quando ele me fez o convite para trabalhar na revista e fui morar no Rio de Janeiro. A redação d'O Bicho estava sediada na casa da Saint Roman, sede do Pasquim. Acabei indo morar na mesma rua, a 100 m dali. Mas mal terminamos de fechar o Bicho nº 5 e fomos despejados por insuficiência econômica – ninguém vendeu anúncios para nós.

Aí começou a aventura de fazer o Bicho de forma independente, sem salário algum, exceto a oportunidade de vender as edições de mão em mão. Fortuna alugou um cômodo no escritório do palhaço Treme-Treme, na rua Álvaro Alvim, na Cinelândia. Compartilhávamos o banheiro e o fogareiro de passar café com malabaristas, domadores de feras, mulher barbada, anões e trapezistas.

Fortuna fundou uma editora em sociedade com seu primo Milton Luz – as Edições Mil, e eu precisei ser emancipada para participar da constituição de outra empresa: a Sugesta, de camisetas com estampas de anúncios antigos – para ter quem anunciasse na revista e supostamente captar novos anunciantes. Nunca alguém recebeu as estampas anunciadas. É que, exceto as duas para a foto do anúncio, as quais pintei à mão, nunca adquirimos nem imprimimos uma só camiseta. Afinal, como disse o Fortuna, o foco não era esse.

Parceria

Finais de expediente – com ou sem os colegas cartunistas e jornalistas tomando cerveja - ele sempre fechava com um Steinhegger – comendo bolinho de bacalhau no boteco, muitos jantares, e vez por outra com extensão em casa no final da noite, marcaram o tempo em que convivi com o Fortuna na redação d'O Bicho, período que durou cerca de um ano e meio. Eu me lembro das pessoas que ele fazia questão de me apresentar em cada esquina ou lugar que visitávamos.

Eu mal havia chegado ao Rio quando, no bondinho de Santa Tereza, Fortuna cumprimentou e fomos logo batendo papo com um conterrâneo seu: Josué Montelo. Eu havia acabado de ler Os Tambores de São Luís - “Prazer em conhecê-lo”. E que prazer visitar ou procurar outros amigos dele, sempre em busca de alguma colaboração para o Bicho: muito prazer! Miécio Café; Nássara; Nico Rosso; Júlio Medaglia e tantos outros.

Fomos muito parceiros, trabalhávamos a quatro braços para editar cada número da revista e ele se tornou meu mestre, meu guru absoluto no mundo do desenho de humor. Posso dizer que tudo o que fiz depois disto traz a sua influência e que a conquista da minha consciência política foi urdida nestes encontros. Até mesmo a ideia de editar a revista de mulheres cartunistas; As Periquitas (que só consegui fazer em 2013) e, atualmente, querer tão ardentemente participar e ajudar na Pirralha tem, em sua origem, as inquietações surgidas a partir da influência do Fortuna.

Ave, mestre, amigo e companheiro!

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Foto de abertura arquivo pessoal da autora:  Fortuna (em pé à esquerda), Crau (primeira abaixo a esquerda) e um grupo de participantes do 4º Salão de Humor de Piracicaba em 1977.