O tempo em que se vendia gibi nas bancas

Autor:
Guto Camargo

Seção:
Ponto de vista

Publicado em:
12 de Fevereiro de 2024

Tempo de leitura:
8 minutos

Uma banca de jornais e revista em 1971 (foto de anúncio publicitário da Editora Abril)

O tempo em que se vendia gibi nas bancas

Por: Guto Camargo

A indústria nacional de quadrinhos viveu um grande momento em meados da década de 1950, 1960 e início dos anos 1970 enquanto durou a política desenvolvimentista aliado ao chamado milagre econômico da ditadura militar. Esta época foi o período de ouro dos gibis de terror brasileiros que abriu portas para outros gêneros como infantil, guerra e westerrn, incluindo super-heróis nacionais e até gibis eróticos. Quando a economia tocada pela ditadura começou a fazer água a partir da metade da década de 1970 o mercado de quadrinhos para autores brasileiros também iniciou seu lento declínio.

Nos anos de 1950/60 existiam editoras como Continental, Penteado, La Selva,Taika, Edrel, entre outras menos conhecidas, todas publicando quadrinhos produzidos por artistas nacionais, que pouco a pouco foram encerrando suas atividades pelos mais diversos motivos, inclusive a censura imposta pela ditadura de 1964. Como o mercado de quadrinhos mantinha ainda um certo vigor ele sobrevive e novas experiências editoriais aparecem durante a década de 1980 com o clima de redemocratização quando surgiu uma nova geração de desenhistas oriundos do enfrentamento à censura. Deste período vem artistas – hoje veteranos – como Laerte, os irmãos Caruso e outros.

Mas a crise econômica se agravou na passagem da década de 70 para 80 na esteira da crise do petróleo e afetou o desempenho econômico desta segunda onda de editoras. O mercado de gibis no país foi profundamente afetado pela crise econômica dos anos 80 e 90, as décadas perdidas, um período marcado pela inflação, desabastecimento de mercadorias, troca de moedas, moratória da dívida externa e nada menos que seis planos econômicos, todos fracassados, até que o sétimo conseguiu estabilizar a inflação. Isto demonstra, independentemente de qualquer análise econômica profunda, a dificuldade que enfrentaram as empresas do período para planejar e gerenciar suas atividades. A tabela a seguir apresenta um quadro com os planos de estabilização econômica surgidos à época.

Cruzado Fev. de 1986 Cria o cruzado
Cruzado II Nov.de 1986 Cria o gatilho salarial quando a inflação atinge 20% ao mês
Bresser Jun. de 1987 Congelamento de preços e salários por 90 dias
Verão Jan. de 1989 Cria o cruzado novo
Collor Mar. de 1990 Cria o cruzeiro
Collor II Fev. de 1991 Novo congelamento de preços e salários
Real Fev. de 1994 Cria o real

Em paralelo a esta desordem econômica se deu o triunfo do neoliberalismo que só foi combatido no primeiro governo Lula em 2003 que resultou em uma fase de crescimento econômico interrompida com o golpe parlamentar no governo Dilma, a ascensão de Temer e Bolsonaro com a retomada da política econômica neoliberal.

O neoliberalismo não é apenas um detalhe, pois sendo uma ideologia que no plano cultural ignora o nacionalismo (presente no projeto dos quadrinhistas brasileiros tem no Pererê do Ziraldo um verdadeiro símbolo) e cuja prática monetária especulativa acarreta a desindustrialização e fragiliza o conjunto das cadeias produtivas e distributivas nacionais, o que é um fator determinante no processo de fragilização da economia. A consequência é o desemprego, a concentração de renda em uma elite e a perda de poder aquisitivo das massas, o que implica menor consumo de bens culturais; quadrinhos incluídos.

Uma pesquisa bastante superficial mostra o impacto destas medidas sobre as editoras de quadrinhos.

  • Grafipar – fechada em 1984 – responsável por um importante e inovador polo de quadrinhos no Paraná

  • Editora d’Arte – fechada em 1993 – responsável pela retomada dos quadrinhos de terror

  • Circo Editorial – fechada em 1995 – Editora representativa da geração surgida a partir da retomada da democracia

  • A Codecri, responsável pelo Pasquim e por uma série de livros de charges e cartuns fecha em 1988 (o Pasquim continua até 1994 por uma editora com novo nome)

Como se não bastasse, em 1995 a EBAL, maior editora especializada em gibis, depois de um período de decadência fecha definitivamente suas portas. Todas estas empresas enfrentaram, em maior ou menor grau, problemas administrativos e financeiros e gigantes como a Abril e a RGE vão deixando de publicar quadrinhos.

Considerações sobre o mercado

A indústria brasileira de quadrinhos entra no século XXI menor do que já fora. As bancas de jornais, espaço tradicional de venda dos gibis, onde se encontrava oferta variada, preços acessíveis e consumo popular hoje ofertam poucos títulos. Atualmente o mercado de quadrinhos se transferiu em grande parte para as livrarias ou lojas especializadas onde se pode adquiri um produto graficamente mais elaborado, de custo mais alto e de tiragens menores. A conclusão é que os gibis deixaram de ser um produto de consumo de massa e se elitizaram.

Por outro lado, as HQs atingiram uma importância cultural significativa e do ponto de vista comercial dialoga com todo um mercado que vai do audiovisual (cinema, TV e streaming) aos videogames, passando por eventos presenciais e brinquedos. Ou seja, se tornou um gerador de emprego e renda que não pode ser desprezado, ainda mais em um país que tem tradição nos quadrinhos e possui dimensão continental como o nosso.

Mas a produção nacional de quadrinhos enfrenta enormes dificuldades onde se notam dois campos:

1) O espaço central do mercado, principalmente bancas, é dominado pela Panini (uma empresa de capital italiano) que publica tanto os heróis DC e Marvel quanto as produções Maurício de Sousa, Disney e mangás (se fosse outro ramo econômico poderia ser alvo dos órgãos antitruste) e;

2) Um mercado secundário ocupado por pequenas editoras, financiamento coletivo e autores independentes com publicação própria, formando um nicho alternativo e descentralizado de tiragens pequenas e estilos variados.

A circulação dos gibis, marcado pelo virtual monopólio de uma única grande editora que controla a presença em banca trava o desenvolvimento e expansão do mercado periférico de quadrinhos das pequenas editoras por problemas de distribuição. Não parece viável (certamente não a curto prazo) que este quadro seja alterado pelo movimento do livre mercado e pela concorrência entre as pequenas editoras. Este quadro abre espaço para o debate sobre o papel regulador e indutor do estado junto à indústria de quadrinhos, até porque o governo Lula tem se empenhado em iniciar um novo ciclo de crescimento econômico e reindustrialização do país.

Incentivos oficiais

A política de incentivo cultural por meio de editais e programas de fomento, que inclui HQs normalmente como literatura, tem colaborado para aumentar a oferta e remunerando minimamente os autores de quadrinhos, o que demonstra reconhecimento político do seu valor.

Apesar dos limites a política governamental entende ter o desenho importância econômica, a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) possui uma seção específica para o setor de Criação Artística (família nº 90.02-7) subdividida em cinco atividades: Serviços de cartunistas; Atividades de desenhistas e coloristas; Serviços de ilustrador de livros; Atividades de criação artística e Atividades de caligrafista. Seria melhor que o item Serviços de cartunistas fosse mais específico e incluísse chargistas e quadrinhistas, mas, na prática, o trabalho do autor de quadrinhos já pode ser enquadrado nestas categorias. Mas permanece o problema que o desenhista, mesmo trabalhando individualmente, não pode ser enquadrado como Micro Empreendedor Individual (MEI) para ter direito a algumas vantagens contábeis.

Apesar de positivas, este quadro não é suficiente para iniciar um novo ciclo produtivo na área do quadrinho ou do cartum. Estas leis deveriam ser ampliadas com incentivos econômicos diretos como, por exemplo, a criação pelo BNDES de uma linha de financiamento, como em outros setores econômicos, para projetos de investimentos em pequenas e médias editoras que visem à retomada da produção nacional de quadrinhos.

Aliás, o governo brasileiro, através da Fundação Nacional de Artes (Funarte) já tentou, em 1986, criar uma agência distribuidora de quadrinhos, experiência que fracassou apesar de reunir os grandes desenhistas da época. Obviamente a distribuidora enfrentou os entraves econômicos do período retratados acima, mas isto não impede de ser a ideia reavaliada, principalmente hoje quando a distribuição se torna muito mais ágil e barata com a internet.

Uma proposta recorrente (que já foi objeto de Projeto de Lei não implantado) é a criação de uma espécie de “cota mínima de banca” para gibis brasileiros. Esta ideia encontra respaldo em regras semelhantes que existem em atividades como cinema e TV paga. Mas nada disto será sustentável se não houver uma abordagem adequada do papel da internet, da inteligência artificial e da proteção aos direitos autorais.

Em resumo, o desafio é criar uma base para construção de um ambiente adequado para o florescimento de uma indústria brasileira de quadrinhos em suas interfaces com aquilo que se conhece como de indústria criativa.