A aventura de editar um gibi no Brasil

Autor:
Colaboradores

Seção:
Quadrinhos

Publicado em:
22 de Setembro de 2023

Tempo de leitura:
11 minutos

Daniel Saks, Rodolfo Zalla e Osvaldo Talo, três envolvidos no relançamento dos gibis do terror brasileiro clássico (foto: arquivo pessoal de Daniel Saks)

A aventura de editar um gibi no Brasil

Por: Colaboradores

(*) Sérgio Mhais

Com a fundação da Editora D-Arte em 1981 Rodolfo Zalla lança o faroeste Johnny Pecos (quatro edições) e a revista de terror Calafrio, a Mestres do Terror saiu em abril de 1982. Além dos amigos Reinaldo de Oliveira e Toni Rodrigues desfilaram pelas páginas das revistas da D-Arte o que de melhor o quadrinho nacional tinha a oferecer; Rodval Matias, Júlio Shimamoto, Flávio Colin, Eugênio Colonnese, Luiz Merí, Rubens Cordeiro, Sidemar de Castro, Maria Godoy, Mozart Couto e muitos talentos foram revelados e desenvolvidos em suas páginas, além das matérias sobre quadrinhos escritas pelo pesquisador Luiz Antônio Sampaio.

As crises econômicas que assolaram o Brasil forçaram o editor a rever a periodicidade (passou a ser trimestral, e no final os títulos eram lançados de forma aperiódica) e o número de páginas, até que em 1993 as dificuldades acabaram por inviabilizar a editora e os títulos fecharam; Mestres do Terror (nº 62) e Calafrio (nº 52). Nos anos 2000 coletâneas e livros com quadrinhos de Zalla foram publicados pelas editoras Opera Graphica e Zarabatana, e, em 2011 Rodolfo Zalla relançou a Calafrio Edição de Colecionador em formato luxuoso a partir do número 53 em parceria com a editora CLUQ, uma publicação quadrimestral que durou 12 edições até o final de 2014 (as últimas sem a parceria do CLUQ).

Surge a Ink&Blood

Em 2015 os dois títulos de horror foram negociados com a editora independente do Paraná, Ink&Blood Comics do artista Fábio Chibilski, que chamou Daniel Saks, leitor e colecionador, para o trabalho de edição, redação, compra do material para a produção das revistas e páginas diretamente do Zalla enquanto ele respondia pela impressão e aquisição de histórias de novos artistas para os títulos Calafrio e Mestres do Terror relançados seguindo a numeração da D-Arte.

A estrutura editorial seria semelhante à da D-Arte; seção de correio com leitores, matérias e novas colunas para substituir as antigas que não mais faziam sentido em tempos de internet. Daniel, entusiasta de séries periódicas a baixo custo, perdeu algumas tomadas de decisão para Fábio e Zalla, dessa forma o preço de capa ficou em R$15,00 e papel off-set no miolo contra sua proposta de R$10,00 e papel-jornal ou reciclado.

A parceria entre Daniel e Fábio, dois tímidos por natureza, apresentou diferenças de ritmo e expectativas e foi interrompida. Daniel é engenheiro químico habituado ao ritmo industrial de trabalho, Fábio, além de artista, ministrava cursos de desenho e defesa pessoal na cidade de Ponta Grossa. Após o fim da parceria, Fábio, que se dedica à produção de quadrinhos para o exterior, continuou como colaborador das revistas enquanto Daniel adquiria experiência e contatos no meio editorial, o que cabia ao sócio que embora recluso mantinha contato com seus alunos de arte e artistas através de redes sociais, meio em que Daniel era completamente ausente.

Zalla ajudou nas seis primeiras edições lançadas pela dupla, três de cada título, porém os números 54 e 55 de Calafrio, e 65 de Mestres do Terror foram lançadas após a morte do veterano. Calafrio 54 foi a última edição produzida em conjunto por Daniel e Fábio. A aquisição de material pelo estúdio de Zalla passou a ser feita através do amigo e colega também argentino, Osvaldo Talo, que Daniel conheceu no mesmo dia que visitou Zalla pela primeira vez. Talo era a pessoa de confiança da viúva dona Ana, que já vivia uma perda de lucidez. Com a morte de Zalla em 2016 a situação ficou mais difícil para Daniel que buscou apoio nos poucos conhecidos e ídolos com que teve contato como fã, entre eles o roteirista e escritor Gian Danton e o cartunista Laudo Ferreira, os mais importantes para a continuação do negócio. Mais tarde, em meados de 2016, aconteceram os primeiros eventos que a Ink&Blood participou em duas cidades paranaenses; a Gorpacon (agosto) em Guarapuava e a Bienal de Quadrinhos de Curitiba (feriado de sete de setembro). A partir de então, os contatos aceleraram. Um artista entusiasta desde o início do projeto, e que passou a colaborar intensamente na produção de histórias, divulgação e contato com outros artistas foi Bira Dantas, que trouxe a colaboração artistas veteranos como Eduardo Vetillo.

As primeiras capas das revistas publicadas na nova fase da editora, agora sob o comando de Daniel Saks

Produzindo as revistas

Ficou definido que cada título teria dois novos números lançados, porém 2016 ainda teve uma edição de Calafrio em dezembro, que comemorava um ano do projeto. Uma das bandeiras de Daniel foi trazer novamente as seções de correio para as revistas, algo desaparecido do mercado de quadrinhos brasileiro, e manter a comunicação direta com os leitores, entre uma das mensagens veio o contato essencial de um dos principais escritores da fase D-Arte, Sidemar de Castro, que logo passou a colaborar com a Ink&Blood. Sidemar se transformou em peça essencial no trabalho de edição, atuante na imprensa de sua cidade, além de escritor, também é desenhista (embora Zalla tenha dado poucas oportunidades de publicação de seus desenhos), e diagramador com refinado senso artístico, o que resolveu uma limitação de Daniel, que montava as páginas das revistas no Word.

A grande motivação do novo editor é o lançamento de revistas e a redação das matérias; ele classifica que seu trabalho com a edição de Calafrio e Mestres do Terror começou como uma honra pelo convite de Fábio, passou a ser um prazer quando começou a escrever nas revistas sobre seu hobby favorito e, por fim, uma responsabilidade a partir do momento em que Zalla faleceu e ficou sob suas mãos a manutenção do legado desses títulos.

Ciente da brevidade e do baixo retorno dos quadrinhos no Brasil, Daniel aceitou trabalhar com as finanças de seu projeto de forma deficitária até que fosse alcançada uma estabilização do patamar de vendas, esse patamar até hoje não foi encontrado, mas vendas são crescentes, muitos leitores, veteranos da época da D-Arte, ou novos, conhecem o projeto a cada momento e se tornam novos colecionadores. Entre as bandeiras defendidas pelo editor estão a recusa em fazer campanhas de financiamento coletivo (não aceita ficar em débito com terceiros) e ajuda vinda de recursos públicos. Suas vendas se dividem majoritariamente em lojas, eventos e leitores que compram diretamente as edições por correio. Como viaja bastante a trabalho, Daniel usa esta forma de deslocamento para procurar novas lojas parceiras e distribuir suas edições, alguns leitores também fazem o trabalho de adquirir pacotes e revenderem por suas redes de contato. Uma equalização do caixa veio através de eventos em 2018, quando começou a operar com algum recurso suficiente para uma próxima edição.

Todas as contribuições à editora são recompensadas em acordos pré-publicação com os artistas ou detentores de direitos sobre as histórias e matérias. O custo de uma edição lançada de Calafrio leva de dois a dois anos e meio para ser coberto através das vendas, com Mestres do Terror, seis meses a um ano a mais que Calafrio. O que ajuda na manutenção do caixa são os leitores novos que adquirem as edições anteriores em estoque.

A ansiedade por não conseguir cumprir o prazo com os leitores (o que após definida a periodicidade em 2017 nunca aconteceu), com a equipe que arregimentou e os novos colaboradores que se engajaram no projeto não só o faz manter a periodicidade dos títulos como também aumentar a frequência de lançamentos, lançar um novo título e volta e meia uma edição extra ou especial. Em dezembro de 2021 houve o lançamento da quarta edição de Calafrio e de uma inesperada Mestres do Terror, além do primeiro número de um novo título, Calafrio Apresenta: Terror Negro, em homenagem à primeira revista em quadrinhos de terror do Brasil somente com republicação de quadrinhos nacionais antigos, e a publicação de contos, uma pauta que não cabia em Calafrio e Mestres do Terror. O final do ano ainda foi marcado pelo lançamento no dia 31 de dezembro do especial O Livro Maldito de Cipriano, do cartunista e diretor cinematográfico de arte Eduardo Cardenas, o mais rápido êxito comercial da editora. Com a avalanche de lançamentos no final de 2021ocorreu um momento em que o caixa da editora operou novamente (e brevemente) no vermelho.

Desde 26 de novembro de 2015, com o relançamento oficial dos dois títulos em cerimônia na Gibiteca de Curitiba a média anual de lançamentos aumentou e até o primeiro semestre de 2023 foram publicadas 56 edições. A Ink&Blood mantém periodicidade, planeja novos lançamentos e oferece o palco que muitos artistas não encontram em outros locais. Daniel acredita que o reconhecimento do público e artistas pelo trabalho aumenta a cada momento e as vendas – ainda insuficientes – crescem lentamente, porém o importante é o crescimento. O editor sente que a divulgação é sua maior deficiência e sabe que não consegue manter o nível de divulgação via redes sociais de outros editores e artistas independentes pois entende que o tempo necessário para isso afetaria sua produção. O lucro da sua iniciativa e esforço ele já conquistou desde que a primeira edição impressa; um item a mais em sua coleção!

Rodolfo Zalla, Mestre das HQs

Nascido em 20 de julho de 1931 em Buenos Aires, Rodolfo Anibal Zalla não se graduou em desenho e ilustração, fez um curto curso/estágio no estúdio do desenhista Carlos Clemen em 1948 e em 1953 faz sua primeira publicação profissional na revista Passiones Biancas onde ilustrou histórias românticas. Na Argentina Zalla trabalhou nas HQs Poncho Negro, Tenente Dean e Rash Nelson, onde também escreveu os roteiros. Realizou trabalhos para a revista chilena Barrabases e Patoruzito. Foi na Argentina que Zalla conheceu Eugenio Colonnese, parceiro de tanto tempo. Com a crise política e econômica na Argentina, sem emprego e após tentativas na publicidade, no final de 1963 o artista vem para o Brasil e se estabelece na cidade de Santos (no destaque caricatura do artista feita por Guto Camargo).

Zalla começou a trabalhar no jornal Última Hora com as tiras Amores Históricos e Jacaré Mendonça (o jornal fechou quando sofreu pressão do governo instalado em 1964) e logo passa a desenhar Targo (herói baseado em Tarzan) para a editora Outubro onde teve, em 1965, contato com os quadrinhos de terror. Em 1966 assume a direção de arte da editora, quando esta já se chamava Taika. Nessa época ele e Colonnese comandavam o Estúdio D-Arte Criações e iniciaram a produção de HQs de guerra para a revista Combate. O estúdio D-Arte chegou a média de produção de 80 páginas mensais vendidas a diferentes editoras. A censura do governo militar iniciou a perseguição aos quadrinhos de terror e Reinaldo de Oliveira apresenta Zalla e Colonnese a Paulo Marte, dono da IBEP (Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas) e o estúdio passa a produzido ilustrações para os livros didáticos.

Em 1972, durante a 1ª Semana de Estudos de Editoração da ECA/USP, o editor da linha infanto-juvenil da editora Abril, Cláudio de Souza, interessado em continuar a publicação das histórias do Zorro nas revistas Disney, contatou Zalla para desenhar o aventureiro de capa e espada pois não havia mais material importado do herói (a revista teve apenas três edições). Na Abril ele fez os personagens da Hanna-Barbera e o herói de desenho animado dos anos 1980, He-Man, sua última colaboração na editora.

Em 1981 Rodokfo Zalla funda a Editora D-Arte e deixa mais uma vez sua marca no universo das histórias em quadrinhos brasileiras. O mestre faleceu de um câncer no fígado em 18 de junho de 2016 aos 85 anos

...................................

(*) Sérgio Mhais, jornalista e escritor curitibano, se especializou na área do jornalismo cultural. Sua escrita e orientações acidamente anárquicas o tornam indesejado nos círculos tradicionais. Leitor voraz de quadrinhos clássicos, e entusiasta da mídia impressa, não se anima com os atuais rumos de publicação gourmetizada.