Os diferentes significados de uma charge

Autor:
Guto Camargo

Seção:
Ponto de vista

Publicado em:
11 de Maio de 2024

Tempo de leitura:
4 minutos

A charge de Jean Galvão, publicada no jornal Folha de S. Paulo, foi alvo de interpretação maliciosa visando fins políticos

Os diferentes significados de uma charge

Por: Guto Camargo

Uma charge de Jean Galvão (reproduzida ao lado) sobre as enchentes que ocorrem no Rio Grande do Sul provocou o protesto da Lilia Schawrcz, professora da Universidade de São Paulo e integrante da Academia Brasileira de Letras que afirmou em rede social; “a charge que aparece hoje na Folha de São Paulo, na minha opinião, não contribui— nem para o debate e tampouco para animar a solidariedade nesse momento tão difícil a história do Rio Grande do Sul”. Replicada de maneira descontrolada pelas redes sociais sua fala criou uma polêmica de dimensão nacional com reclamações de muitos leitores.

Mas o problema maior foi que a imagem serviu de combustível para a oposição conservadora acusar o jornal (e por tabela a esquerda) de debochar da tragédia, políticos classificaram o desenho como “canalha”, “chacota”, “escárnio”, afinal este grupo não perde uma oportunidade para distorcer, manipular situações e criticar o governo federal. Na verdade a direita aproveitou o clima para desviar o foco da tragédia pois, afinal, o presidente se mobilizou rapidamente para ajudar a região enquanto o governador do estado, Eduardo Leite (PSDB), e o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), ambos opositores ao PT de Lula, foram acusados de negligência com relação à causa ambiental, o que teria potencializado os problemas causados pelas chuvas.

Que a charge de Jean Galvão tenha sido, a sua revelia, utilizada na guerra ideológica que a direita brasileira e suas frações fascistas movem contra o governo petista não causa surpresa a ninguém, o que parece assustador é que pessoas bem informadas e inteligentes parecem não se dar conta que o espaço digital controlado pelas big techs achatou de tal maneira o debate público que a racionalidade quase desaparece em meio a ignorância, mentiras e distorções.

Uma boa charge se justifica quando desafia o controle político e social e a normalidade da ordem conformista. Isto significa que nem sempre ela é feita para causar riso, mas também para tensionar, lançar luz sobre o absurdo da situação e não é necessariamente lúdica, podendo chegar mesmo ao desagradável.

Existe um conceito definido pelo autor por trás de sua charge, mas acontece que a obra pode ser “lida” a partir de um contexto cultural diferente do originário e “interpretada” pelo leitor a partir de diferentes referências. Este processo possibilita que a imagem de origem a outros “discursos” e duplos sentidos que abrem campo para a manipulação e fogem ao controle de seu criador.

É neste ponto que surgem os problemas políticos; se o público raciocina a partir de referências falsas que lhe são inculcadas diariamente pelas redes sociais (em muitos casos somente por elas, sem qualquer contraponto) e se encontra imerso em um contexto cultural determinado e manipulado, ou seja, as “bolhas” que aprisionam suas mentes, está criada as condições para que a comunicação seja uma espécie de “babel pós-moderna” onde se fala a mesma língua mas com sentidos particulares e diferentes entre si. Surgem daí pérolas como o terraplanismo que classifica o nazismo como sendo de esquerda.

Se nos dias atuais o texto escrito que se caracteriza como uma narrativa direta está sujeito a equívocos no mundo digital, o que dizer de uma charge onde a imagem tenta interpretar um acontecimento? A charge exige um conhecimento prévio sobre o assunto abordado para sua correta compreensão, em um jornal as referências ao tema retratado no desenho podem ser buscado e contextualizado pelo leitor nas páginas publicadas na edição, mas o mesmo não acontece quando a imagem é retirada deste espaço e passa a circular pela internet nas mais variadas condições e, muitas vezes, acompanhadas de uma “explicação” completamente aleatória.

É óbvio que Lilia Schawrcz não se aliou ao conservadorismo mais tosco quando publicou seu comentário e teve o cuidado de dizer não querer “cancelar ninguém” e de reconhecer o papel das charges e da liberdade de imprensa na democracia, mas, no salve se quem puder desregulado das redes sociais estas premissas são simplesmente ignoradas. Dada a repercussão do caso o próprio Jean Galvão pediu desculpa aos que se sentiram ofendidos e esclareceu sua intenção: “Aqui dou voz à inocência da menina, que entende que cada gota a mais que cai do céu fará o nível da água subir. Até uma gota de lágrima”.

Entre os chargistas, obviamente, houve uma avaliação mais sofisticada do que aquela determinada pelo senso comum nas redes sociais. Cau Gomes ironizou: “As charges terão de vir com texto legenda explicativo para que fique bem óbvio nestes momentos de crise”. Alex Ponciano lembrou-se de outras ocasiões onde charges causaram problemas devidos ao tema sensível, como ocorreu após o incêndio na boate Kiss, do tsunami no Japão e com as investidas do jornal francês Charlie Hebdo. A interpretação rasa sobre a charge foi demolida pelo cartunista Genin Guerra: “Achei poética a charge”, comentou com os colegas. Lacrou!

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Mais sobre este assunto pode ser visto aqui: Uma visão “sensível” sobre a caricatura