Autor:
Guto Camargo
Seção:
Ponto de vista
Publicado em:
24 de Novembro de 2023
Tempo de leitura:
8 minutos
Uma guerra também se dá no campo simbólico, onde palavras e significados são armas, como demonstra a charge de Paulo Batista
A guerra das charges na Faixa de Gaza
Por: Guto Camargo
A guerra entre Israel e Palestina (ou contra o Hamas, como preferem alguns) não ocorre apenas na Faixa de Gaza, mas também nos meios de comunicação de massa – internet incluída – onde a propaganda de guerra, a edição tendenciosa da cobertura jornalística e as redes sociais são os campos de batalha ideológicos onde se disputa o “significado” do conflito, ou em termos mais simplórios; quem é o agressor e quem é a vítima.
A disputa ocorre pela interpretação dada às imagens que caracterizam os heróis e os bandidos. A imprensa ocidental pretende definir qual lado representa a civilização e qual a barbárie, a modernidade em oposição ao atraso pois se trataria da luta da democracia contra o autoritarismo. A manipulação destes conceitos é a munição deste conflito simbólico e uma das armas é a charge política que é chamada a participar do esforço de guerra. Aliás, não seria possível à charge se eximir deste conflito pois sua matéria-prima é exatamente a exploração das contradições do momento político visando fazer humor. A questão é saber se o chargista está denunciando os crimes de guerra,, trabalhando pela paz, buscando fazer com que o leitor reflita sobre a complexidade do momento escancarando suas contradições ou atuando como propagandista de Israel. Desta formas jornais entraram em guerra semiótica e ideológica.
As vítimas do combate
Os grandes jornais, como empreendimentos comerciais que são, estão preocupado em não “ofender" o leitor médio, tampouco os anunciante, é por isso a linha editorial regula o conteúdo ofertado, inclusive em relação às charges políticas. A invasão e o massacre em curso na Palestina ampliou o controle sobre a produção dos chargistas políticos e deu vazão a um debate envolvendo o conteúdo dos desenhos e suas mensagens, o que atinge a ideia de liberdade de imprensa, ética jornalística e compromisso com a veracidade da informação. Assim o humor gráfico passa a ser como uma arma de guerra entre a propaganda política e a informação
Uma das vítimas desta guerra foi Steve Bell, do The Guardian, no Reino Unido, que foi avisado que seu contrato não será mais renovado no ano que vem, isto após ele ter apresentado um cartum com críticas a Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel que, pasmem, não chegou a ser publicado no jornal uma vez que foi recusado pelo editor. A charge foi baseada em uma de 1966 sobre a Guerra do Vietnã (acompanhada da frase “Depois de David Levine”) que, por sua vez, segundo Steve Bell, teria sido inspirada pela tela Lição de Anatomia do dr. Deiman, de Rembrandt. O episódio encerrou uma colaboração de 40 anos pois a primeira ilustração de Steve Bell para o jornal foi publicado em 1 de novembro de 1983.
A charge (acima à esquerda) que foi a gota d'água que precipitou a saída de Steve Bell do Guardian depois de 40 anos de serviço
O artista declarou que há muito tempo tinha uma “diferença de opinião” com o jornal, mas a dispensa ocorreu sem apresentar um motivo formal, o que pode significar que a charge tenha sido a gota d'água que transbordou o copo. Mas o fato é que o desenho foi considerado antissemita e recebeu muitas críticas, no entanto, o chargista não aceitou a acusação e afirmou não ter motivo para se desculpar com ninguém pois não usou “nenhum estereótipo antissemita” e a crítica era a um governo, não há um povo. Em declaração a agência EFE ele diz estar em contato com o Sindicato Nacional de Jornalistas para estudar possíveis medidas legais e desabafa: “O problema é que temos um lobby muito ativo… eles estão muito, muito alertas a qualquer indício de qualquer coisa, qualquer crítica a Israel… Mas o que me parece e que veem antissemitismo onde não existe realmente nenhum.”
A abelha terrorista
Outro caso ruidoso foi o de Dave Granlund que teve problemas com o The Aspen Times (Colorado, EUA) causados por uma charge vista como "equivocada" pois insinuava que Netanyahu, ao provocar o Hamas (caracterizado como as abelhas), seria responsável, ao menos em parte, por deflagrar a guerra. Para fugir à responsabilidade o jornal publicou uma Carta do Editor pedindo desculpas onde afirma, em relação ao desenho, que “a mensagem não é clara, nem criativa, nem construtiva. É mal concebida (espero que não intencionalmente ou apenas preguiçosamente), enganosa e perigosa em todos os sentidos”, um desculpa que ignora a função crítica que deve ter uma charge política além de ser no mínimo deselegante para com o cartunista que, no entanto, vestiu a carapuça e também se retratou. A primeira charge foi publicada na segunda-feira e no sábado sairia aquela que seria tida como a “verdadeira” leitura do artista (e do jornal) sobre a questão; o Hamas sordidamente se infiltrando em Israel como uma víbora.
As duas charges de Dave Granlund; a da esquerda, supostamente favorável ao Hamas e a posterior (a dir.) que quer deixar claro que Israel é que foi agredido
Pressão sionista
Aliás, retiraruma charge do site e pedir desculpas aos leitores se tornou uma prática usual. Monte Wolverton, chargista que atua no The Philadelphia Inquirer também sofreu a mesma pressão e cedeu. Após a publicação da sua charge na edição de 17 de outubro (reproduzida ao lado) o Conselho Editorial do jornal se manifestou classificando a charge como “insensível” e pediu desculpas ao leitor. Mas isto não foi suficiente pois o jornal também publicou uma nota de retratação do artista:
“Peço profundas desculpas pelo meu desenho recente que retrata uma bota de combate israelense pronta para esmagar o Hamas. Eu tinha a intenção de mostrar que Israel estava prestes a expulsar os terroristas do Hamas, mas minha escolha insensível de imagens efetivamente mostrou Israel como um vilão. Agora percebo que isso causou dor para muitos leitores e peço sinceras desculpas.”
Aparentemente estas medidas são fruto da pressão de leitores que saem em defesa de Israel e condenam o Hamas, mas não se pode ignorar a forte presença do lobby judaico (marcadamente sionista) na mídia americana que busca caracterizar toda crítica às atitudes de Israel, ou mesmo à pessoa de Netanyahu, como uma odiosa mostra de preconceito antissemita. No entanto, ao menos em um caso a pressão pró palestina foi vitoriosa.
Feitiço contra o feiticeiro
O trabalho de Michael P. Ramirez, chargista oficial do Las Vegas Review-Journal, que é um conservador conhecido por defender as posições da direita americana, é republicado pelo jornal Washington Post e uma de suas charges, apresentada no site do dia 6/11, mostra o Hamas se escondendo atrás da população de civis palestinos. O desenho foi definido como racista e desprezível por leitores progressistas e, segundo declaração do próprio Ramirez, também por alguns jornalistas que causaram um "alvoroço" na redação (charge ao lado). Diga-se de passagem que não é a primeira vez que Michael Ramirez é chamado de racista por seus críticos que o acusam de sempre abordar as minorias de maneira preconceituosa, O jornalista Jack Crosbie deixa claro sua opinião sobre a obra do artista e, de maneira geral, o que ele considera a decadência da charge política dos grandes jornais norte americanos: “Mas para as publicações que ainda mantêm alguma tênue compreensão do jornalismo como um bem público, ou, pelo menos, desejem publicar textos e comentários que informem e desafiem o público, há muitos usos melhores para o seu dinheiro do que republicar este tipo de lixo”. (A crítica completa pode ser lida AQUI - texto em inglês).
Para todos os efeitos o Washington Post considerou a charge “inadequada” e a retirou do site, mas a atitude do jornal, longe de pacificar a questão serviu para aumentar os protestos sionistas e a pressão da direita que passou a acusar a publicação de se dobrar aos socialistas, fanáticos de esquerda e mesmo apoiar terroristas. O chargista, em um artigo escrito para a revista Newsweek, se defende dizendo ter sido "cancelado", qualifica a decisão como censura e defende a liberdade de imprensa esgrimindo os argumento do liberalismo clássico. Ao final reafirma sua leitura simplista da situação: "O Hamas é uma organização terrorista que culpa Israel pelo ataque a civis, mas ignora sua própria cumplicidade neste sofrimento. Foi o Hamas que primeiro lançou o ataque contra Israel, continua a usar a infraestrutura civil como cobertura e restringe a evacuação de civis de Gaza de áreas que Israel deu alerta prévio de ataques" (A sua defesa pode ser lida AQUI - texto em inglês)
Desta maneira guerra continua, as charges - e muitos repórteres - estão sendo abatidos no campo de batalha enquanto o genocídio passa no telejornal da noite.
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As charges internacionais reproduzidas no texto foram obtidas em publicações na internet e tem o objetivo exclusivo de contribuir no esclarecimento dos pontos apresentados.