Autor:
Redação
Seção:
Memória
Publicado em:
21 de Dezembro de 2022
Tempo de leitura:
9 minutos
Como funciona um grande estúdio de quadrinhos
Por: Redação
Bira Dantas é um dos grandes ilustradores brasileiros; chargista com atuação no movimento sindical, cartunista conhecido internacionalmente e desenhista de quadrinhos dos Trapalhões, talvez sua faceta menos conhecida. Bira atuou principalmente no estúdio Ely Barbosa, um importante polo de produção artística onde, como acontece também em outros estúdios, os desenhistas não assinam seu próprio nome, mas sim o do proprietário do estúdio.
Ely Barbosa criou animações publicitárias que ficaram na memória popular como as traças da dedetizadora D. D. Drim; as campanhas do Baú da Felicidade do animador de auditório Sílvio Santos, programas infantis para a TV, coleções de discos infantis e peças teatrais com a Turma do Cacá e gibis em Quadrinhos (Turma do Cacá, Festival HB e Os Trapalhões).
Bira, depois de um período de estágio foi contratado como desenhista assistente de Eduardo Vetillo, um artista multifacetado que desenhou HQs de personagens como Urtigão, Hanna-Barbera, Os Trapalhões, Chaves, Spectreman, Sítio do Pica-pau Amarelo, Xuxa, super-heróis, faroeste, caricaturas e ilustrações para livros didáticos.
Depois de trabalhar um ano como assistente, Bira passou a integrar a equipe do gibi Os Trapalhões que Ely produzia para a Bloch Editores. A estrutura implantada lá era similar à de outros estúdios como Mauricio de Sousa, Divisão de quadrinhos Abril, Press Editorial, Eloyr Pacheco (Brainstore), Editora Escala, Franco de Rosa (Ópera Graphica e Kalako), Tony Fernandes (Pégasus Comics) e de estúdios de Animação como Briquet Filmes, Daniel Messias, Cafeu Filmes e Walbercy Ribas (Start Anima).
Em pé: Vânia, estagiário (ao fundo), Cleiton Cafeu, Marcos Félix, Álvaro, Wanderley Feliciano, Alessandra D'Amico Cafeu e em baixo a esquerda Marcio Minoro Ueno. |
Bira explica aos leitores da Revista Pirralha o funcionamento dos estúdios
Quando desenhamos personagens de outros criadores recebemos o chamado ‘Model Sheet’, um modelo de proporções e detalhes do rosto e corpo das personagens, de frente, perfil, costas e a proporção entre personagens da turma. Recebemos também exemplos de expressões faciais e corporais para a gente se ambientar aos personagens. No Ely Barbosa, isso foi criado pelo chileno Carlos Cárcamo que desenhou também as primeiras HQs. O Cárcamo tinha um estilo que lembrava muito o do francês Albert Uderzo (parceiro de Goscinny em Asterix).
Mas no estúdio cada desenhista levava o traço para o seu lado e o Ely respeitava isso. Quando extrapolava muito, ele chamava atenção do desenhista. Mas a gente tinha bastante liberdade. Eu seguia bem o estilo do Cárcamo e tentava brincar mais nos personagens secundários. Todos desenhávamos os mesmos personagens, mas era possível ver que alguns faziam o Mussum mais gordo e mais beiçudo, o Didi mais narigudo e orelhudo, o Zacarias mais gordinho e o Dedé mais forte e metido a bonitão. As vezes o Ely trazia reclamações do Rio de Janeiro onde ficava a Bloch: ‘O Didi reclamou que ele não usa mais a costeleta deste tamanho.’ ‘O Dedé reclamou que tem muita piada deixando-o afeminado.’ ‘O Muçum reclamou do tamanho do beiço.’ Zacarias nunca reclamou de nada.
Lá nos anos 1950, 60, os roteiristas escreviam as histórias com descrições das cenas, o texto era revisado e enviado a um artista que arte-finalizava e letreirava a HQ. A página pronta passava novamente por uma revisão para ver se tinha algum erro ortográfico ou de imagem. Se tivesse erro em texto ou desenho (erro de perspectiva, personagem com seis dedos, duas mãos esquerdas, manga curta num quadrinho manga longa no outro) o desenhista usava guache branco ou colava um papel por cima para consertar os erros. Este processo deixava a produção mais lenta.
Ely Barbosa adotava o modelo ‘Ford’ de produção usado pelos estúdios a partir da década de 1970. Assim como a indústria automobilística do norte-americano Henry Ford, os estúdios passaram a dividir as etapas de produção das HQs entre vários profissionais que se especializavam em determinadas partes do processo. Isso para aumentar a produtividade e reduzir os custos. Assim, o roteirista, mesmo sendo desenhista razoável, era incentivado a só fazer roteiros e deixar os desenhos para profissionais melhores e mais rápidos. Claro que isso fazia com que se especializassem mais em como contar uma história, como organizar as gags, como criar o suspense e, principalmente, como terminar a história, com final surpreendente, jocoso ou inusitado.
A engrenagem em ação
As etapas eram roteiro, desenho a lápis, copy-desk (correção ortográfica), letreiramento ou letramento (feito com canetas nanquim de arquiteto), arte-final a nanquim (normalmente se usava pincel, bico de pena, canetas de arquiteto), aplicação de cores (pintadas com canetas hidrográficas em papel vegetal ou ecoline em cópias reduzidas e com os códigos de cada cor para orientar a gráfica). Tudo isto era organizado em um boneco (ou boneca) com as reduções das páginas coladas em sequência com as páginas marcadas em baixo. A diagramação, expediente e propagandas (normalmente de outros gibis da Bloch como Capitão América, Homem-Aranha, Thor, Homem de Ferro ou cartazes de filmes dos Trapalhões que entrariam no circuito de cinema) eram feitos na editora.
A gente desenhava em folhas de tamanho A3 (o gibi era impresso em formatinho A4 dobrado). A redução ajudava os desenhos a ficarem mais bonitos, além de ser mais fácil desenhar grande do que pequeno. Eu desenhava com lápis holandês Koh-i-noor 2B em papel Schoeller alemão que o Ely mandava imprimir um gabarito (em verde ou azul) com a divisão de quadros e linhas para fazer as letras. Quando era feito o fotolito (processo gráfico do século passado) através de uma cópia fotográfica que eliminava todas as cores, só apareciam o preto e vermelho, todas as linhas auxiliares sumiam.
Os roteiros eram organizados por Thereza Rodrigues, esposa do Ely, em pastas suspensa em arquivos de aço. Ela separava os roteiros a serem aprovados pelo Ely (ele lia tudo e dava palpites nas histórias, eu mesmo cheguei a escrever algumas na época), roteiros aprovados e revisados, HQs desenhadas a lápis (esperando ser letreiradas), HQs letreiradas e arte finalizadas esperando a revisão final e HQs selecionadas para a edição. Toda história trazia um código no primeiro quadro: TEB (Trapalhões Ely Barbosa), o número da HQ e o ano. Essa era a única assinatura do estúdio que entrava, ao contrário de Mauricio de Sousa e Disney que tinham assinaturas padrão para serem coladas na hora do past-up. O Ely escolhia a melhor história para abrir o gibi e uma HQ de página única para fechar a edição e, no rodapé, colocava o expediente da Bloch e do estúdio. Ao final do processo outros artistas faziam a capa em cima da história principal e estava fechada a edição que era enviada por malote pra Bloch no Rio, que fazia os fotolitos e retocava com abdek (um produto grosso, de cor roxa, feita de derivado de petróleo, que bloqueava imperfeições no fotolito como riscos, sombras de colagem na arte, etc) para serem impressos em rotativas e distribuídos em bancas.
Normalmente os trabalhos demoravam três meses para serem publicados, mas podiam demorar mais porque a produção no estúdio era grande e as HQs entravam num processo de escolha editorial. Num mês produtivo, Eu chegava a produzir 50 páginas de lápis. Vetillo chegava a produzir 120. Todo este material era acumulado, agrupado e editado segundo as necessidades do mercado de banca. No auge das vendas em banca, a Bloch chegou a lançar Os Trapalhões (48 páginas internas, mais capa), As aventuras do Didi, Bonga o vagabundo Trapalhão e o Almanaque trimestral com 120 páginas.
Atualmente o leitor quando pensa na criação das HQs imagina autoras e autores trabalhando de forma independente e não como numa grande linha de montagem. Quem lê os álbuns em Quadrinhos de Bianca Mól, Germana Viana, Laerte, Fefê Torquato, Angeli, Mary Cagnin, Danilo Beyruth, Eliane Bonadio, Marcel Bartholo, Fabiana Signorini, Raphael Fernandes, Flávia Gasi, Alex Mir, Omar Viñole, Ligia Zanella, Marcatti, Luiza Lemos, Laudo, Mari Santtos, Nanda Alves, Will, Renata CB Lzz, Aroeira, Leandro Assis, Triscila Oliveira, Roberta Cirne, Nilson Azevedo não imagina que HQs pudessem ser feitas com tantas mãos anônimas em um estúdio, cada uma fazendo sua parte (Não conhece algum destes nomes? Pesquise na web, você terá uma grata surpresa).
Um grande aprendizado
O Ely supervisionava todo o processo. Quando eu ia entregar as HQs a lápis ele pedia para ver, fazia um círculo num detalhe do desenho, riscava uma linha por toda página até a margem oposta e escrevia: ‘Aumentar moeda’ e me explicava, ‘Essa moeda aqui está visível agora, mas quando reduzir 75% vai sumir ou virar um borrão.’ Eu respirava fundo, apagava todo o risco e os desenhos riscados, completava os desenhos, aumentava a moeda e levava de volta. O Ely falava: ‘Ahhh, tá bem melhor!’ E eu: ‘Mesmo a moeda estando do tamanho da mão do personagem?’ E ele: ‘Sim, isso não importa. Quando reduzir ninguém vai notar que a moeda está do tamanho da mão dele. Mas todo mundo vai ver que é uma moeda.’
Na Semana seguinte a situação se repete; olha tudo, faz um círculo em volta de um prédio, risca a folha de um lado a outro e escreve: ‘Melhorar perspectiva do prédio.’ Outra semana e ele pega a lapiseira 0.9 mm e quando vai começar a riscar, eu falo: ‘Ely, não dá pra você escrever ao lado do desenho que preciso corrigir?’ E ele: ‘Você está aprendendo mais apagando e refazendo do que apenas corrigindo o que eu pedi.’
Venhamos e convenhamos, é um argumento pra lá de convincente.
Para conhecer mais sobre os estúdios de quadrinhos
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No destaque o cartão de Natal feito pelo estúdio para o ano de 1982 (clique na imagem para ampliar)
As fotos que ilustram esta matéria são uma raridade, feitas em outubro de 1982 pertencem ao acervo de Cleiton Cafeu que as fotografou em uma tarde em que Ely Barbosa não estava no estúdio. Nelas aparecem o diretor de arte e quadrinhista Domingos Souza (Mingo DC); desenhistas Cleiton Cafeu, Arthur Garcia, Vânia; arte-finalista e letrista Wanderley Feliciano (já falecido); coloristas Marcio Minoro Ueno, Alessandra D’Amico Cafeu e estagiário/aprendiz de caricaturista Álvaro.