A arte do desenho a bico de pena resiste

Autor:
Guto Camargo

Seção:
Memória

Publicado em:
12 de Dezembro de 2023

Tempo de leitura:
6 minutos

Uma amostra da diversidade das famosas penas Gillot, utilizadas por grandes artistas como Jaime Cortez e Alex Raymond.

A arte do desenho a bico de pena resiste

Por: Guto Camargo

Antigamente a arte final dos desenhos destinados a impressão era feita, em conformidade com o estilo do artista, por pincéis de ponta redonda ou por penas de aço; o conhecido desenho a “bico de pena” tão característico dos quadrinhos. As penas, como os pincéis, são fabricadas em diversos tamanhos e formas, o que permite variar a espessura e a leveza das linhas. Isto fez das penas um instrumento particularmente adaptado para o desenho de cartuns e HQs.

Hoje o computador e os softwares de desenho substituíram o papel, o lápis e a tinta na produção dos cartuns e das histórias em quadrinhos que já surgem digitais, mas ainda há uma legião de artistas que preferem a leveza do traço feito à mão. Pode-se pensar que o império do nanquim no campo do humor e das artes gráficas terminou, no entanto, o fascínio do uso do pincel e da pena ainda mantém seu encanto e atrai, no mínimo, a curiosidade dos jovens desenhistas que se interessam em saber como eram as técnicas tradicionais.

Surgem as penas de aço

As penas de aço são um produto da revolução industrial, somente após o surgimento das máquinas modernas que permitiam trabalhar industrialmente com chapas de aço mais finas e curvas foi possível a fabricação em massa e sua popularização. Antes do século XIX usava-se, literalmente, uma pena de ganso que era muitas vezes afilada pelo próprio artista para entintar um desenho.

O príncipe de Gales, Albert Edward, e a princesa Alexandra visitam a fábrica de Joseph Gillott (publicado em The Illustrated London News, 21 de novembro de 1874)

Entre as penas de aço mais usadas pelos artistas dos quadrinhos está a Gillot, criação de Joseph Gillott que fundou sua fábrica em 1827 em Birmingham (Inglaterra) e registrou sua patente de pena de aço em 1831, não pela invenção da pena metálica em si mas pelas inovações nela introduzida, pequenos cortes laterais na lâmina para melhorar a flexibilidade e fluxo da tinta. Alias, na mesma cidade de Birmingham havia outros artesãos que fabricavam penas de aço, um texto escrito por Henry Boore em 1890 afirma existir treze empresas envolvidas com a fabricação de penas em Birmingham as quais “produzem cerca de vinte e quatro toneladas por semana em canetas e pontas de porta-canetas de aço” e “representam uma produção média semanal de 200.000 unidades brutas de canetas” (1)

À parte as qualidades das penas fabricadas por Gillot, foi sua visão empresarial que fez de sua manufatura um sucesso, durante a década de 1830 ele abriu uma representação em Nova York para posteriormente fabricar também nos EUA suas penas que se tornaram muito populares no final do século e foram usadas pelos desenhistas da nascente indústria dos comics, uma vez que se apresentavam mais apropriadas para o desenho do que para a tradicional caligrafia. Entre os adeptos da marca estava, entre outros, Alex Raymond, que a usou em Flash Gordon. Estes grandes desenhistas fizeram com que ela se tornasse praticamente uma unanimidade entre os desenhistas.

As penas Gillot ainda são fabricadas até hoje em Birmingham, com a diferença que atualmente ela é uma linha de produtos da William Mitchell, empresa especializada em materiais para caligrafia como canetas-tinteiro e marcadores cuja inauguração também remonta ao início do século XIX.

Os rebeldes da tinta

Uma técnica muito comum entre os ilustradores é usar um pincel para fazer as grandes manchas e sombras pretas e o bico de pena para pequenos detalhes (um dos mestres nesta técnica foi Milton Caniff), no entanto alguns artistas não se enquadram neste padrão. Um destes é Robert Crumb, que coerentemente com seu estilo de vida rebelde também exerce a rebeldia em sua forma de desenhar ao usar uma caneta de nanquim recarregável própria para desenho técnico, a Rapidograph, que ele considera mais adequada ao seu traço; “Minha linha tem um estilo neurótico, trêmulo e incerto, que funciona se escondido por trás de um monte de hachuras. (2)

Outro que renega a pena e o pincel é Neal Adans, para surpresa de Will Eisner, ardoroso entusiasta do pincel. Em entrevista concedida a Eisner para o livro Shop Talk (Editora Criativo) Adans esclarece que após um desenho detalhista com o lápis realiza a arte final com canetas Pentel e Pilot com a justificativa; “Eu nunca preciso mergulhar a ponta em um tinteiro”. (pág. 50)

No mesmo livro, em outra entrevista, Gil Kane também esclarece que utiliza estas canetas de ponta macia e descartáveis para finalizar um desenho bem-acabado a lápis. No entanto, confessa que isto se dá por uma certa limitação; “Eu fui desenhista a lápis durante quase toda a minha vida e nunca desenvolvi a precisão e a delicadeza que a maioria das pessoas desenvolve quando usa pena ou pincel. Usando marcador eu consigo obter uma variedade de efeitos que considero muito satisfatórios. (pág. 205)

A persistência da pena

Mesmo em tempos digitais e de concorrência com as canetas descartáveis a técnica do bico de pena persiste, inclusive entre as novas gerações. Um exemplo é o álbum Beco do Rosário, publicado pela Veneta, de Ana Luiza Koehler (vencedora do Troféu HQ Mix 2021 nas categorias desenhista nacional, arte-finalista nacional, colorista nacional e edição especial nacional) que fez uso da pena na finalização das páginas pois a artista considerou este o tratamento mais adequado ao estilo do desenho apresentado no livro. A artista relata sua experiência:

“a minha transição do lápis num traço realista e ‘certinho’ para o bico de pena mais solto não foi nada fácil. (…) devo ter ficado uns dois anos entre idas e vindas, experimentações e muitos cabelos arrancados até me sentir à vontade com o bico de pena. Em compensação, quando fiquei à vontade com o bico de pena, a surpresa foi descobrir um novo estilo. E uma outra forma bem mais tranquila de encarar o desenho.” (3)

A conclusão, portanto, só pode ser que a tradição da tinta nanquim e do bico de pena não se encerrou. Certamente novas HQs, caricaturas, charges e cartuns continuarão a ser produzidas pelos métodos tradicionais ainda por muitos anos.

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(1) Projeto Gutenberg (texto em inglês) disponível AQUI

(2) Robert Crumb, minha vida, pag.126. Editora Conrad.

(3) Texto publicado no site da autora.Veja AQUI