Autor:
Colaboradores
Seção:
Memória
Publicado em:
19 de Agosto de 2023
Tempo de leitura:
9 minutos
Capas desenhadas por Zé Kimura quando trabalhou nas grandes editoras de quadrinhos em São Paulo (reprodução a partir do site Guia dos Quadrinhos)
O Japão bem brasileiro de Zé Kimura
Por: Colaboradores
Bira Dantas (*)
Este texto é a primeira parte de um trabalho de recuperação da história e da memória deste excelente artista gráfico que fez parte da construção do estilo dos quadrinhos de estúdio dos anos 70/80 em São Paulo.
Fukumatsu Kimura e Fusa Kobata imigraram do Japão para o Brasil no começo do século XX. Os Kimura chegam em 1920 e os Kobata por volta de 1928. Fukumatsu tinha um irmão, Sangoro e Fusa Kobata uma irmã, Natsu. Fukumata se casa com Fusa e Sangoro com Natsu. Na década de 1940 toda a família Kimura se estabelece na região de Maringá, (Paraná). Fukumatsu e Fusa passam a viver em um sítio chamado Floresta onde, em sociedade com o irmão e as famílias Makiyama e Tominag, fundam a Cerâmica Floresta (que produzia telhas e tijolos). Com a chegada de outros moradores o sítio acabou virando uma vila até que em 1959 foi emancipada e virou a cidade de Floresta. Foi nesta pequena cidade que, entre onze filhos de Fukumatsu e Fusa, nasceu José Satoshi Kimura em 25 de julho de 1952, o futuro artista Zé Kimura (foto no destaque).
Desde que começou a engatinhar, já passou a riscar desenhos pelo chão. E assim seguiu desenhando infância afora. Em 1966, aos 14 anos, mudou-se para São Paulo para ajudar Catarina, a irmã mais velha, que já era casada e estava grávida de uma menina. Seguiu desenhando influenciado pelos Gibis comprados nas bancas de jornais. Com o traço mais evoluído, o jovem Zé Kimura sonhava em fazer contatos com gráficas ou jornais onde pudesse publicar ilustrações e HQs.
Foi assim que chegou no jornal Folha de S. Paulo na rua Barão de Limeira onde funcionava o estúdio de Mauricio de Sousa que, desde 1963 ilustrava a ‘Folhinha’, suplemento infantil do jornal. Em 1973, um certo ‘Kimura’ passou a assinar as ilustrações de capas com seus personagens, bem diferentes da Turma da Mônica. Era o grande ‘début’ da carreira deste artista de primeira linha num jornal de grande tiragem e boa publicidade. Certamente marcou a memória de muita gente, como o cartunista e pesquisador Luigi Rocco:
“Apesar da minha pouca idade eu conseguia perceber ali na Folhinha uma diferenciação e uma maturidade no traço que pouco se via nos jornais ou revistas em quadrinhos da época. O autor assinava J. Kimura, e eu pensei logo num japonês, ou descendente, mas o traço pouco tinha a haver com os animês exibidos pela TV Record de São Paulo, como o Príncipe Planeta ou o Super Dínamo. Essa turminha, incluindo um personagem chamado Pepe Nico, continuou a me visitar semanalmente durante um bom par de meses. De repente desapareceu e eu nunca mais ouvi falar do Kimura nem da sua turminha.”
O pesquisador afirma ainda que:
“Apesar do traço personalíssimo, Kimura sabia também emular o traço de outros autores, ou seja, conseguia desenhar, como dizem os franceses a manière de, (a maneira de), fazendo com que se encaixasse perfeitamente no trabalho de estúdio e de linha de produção. Por problemas de saúde, Kimura acabou abandonando os quadrinhos, mas seu talento continua presente mostrando que deve ser resgatado pelo bem da memória de nossas artes.”
Da Folhinha, Kimura foi oferecer seus serviços na editora Abril, onde trabalhou de 1976 a 1977, cujo departamento de HQs era dirigido pelo quadrinhista Primaggio Mantovi (criador do palhaço Sacarrolha). Zé desenhou roteiros do próprio Primaggio, Julio Andrade Filho e Gerson Teixeira publicados nas revistas Mickey, Almanaque Disney, Zé Carioca, Pateta e os Especiais Temáticos (com várias republicações) além de várias capas, como pode ser visto no site Guia dos Quadrinhos (AQUI). Deste tempo, Primaggio comenta: “O Zé desenhou umas HQs Disney num estilo simplesmente revolucionário, mas depois desapareceu.”
Em 1979, Kimura virou free-lancer do estúdio Ely Barbosa, que estava começando a produzir o Gibi Os Trapalhões para a Bloch Editores. Esta colaboração seguiu, pelo menos, até 1982. Desse tempo, Domingos Souza, o Mingo, era diretor de arte do estúdio. Além de produzir tiras, quadrinhos e ilustrações do Cacá e sua Turma, fazia capas do gibi Os Trapalhões e dirigia todo o pessoal de arte. Sobre Kimura, fala o seguinte:
“Pras pessoas conhecerem um pouco do Kimura ele era um cara do tipo ‘descolado’ do jeitão dele. Era tranquilo, sempre na dele, sem pressa, o que precisava ele desenhava. Um tremendo talento, ouso dizer: um ‘monstro’ no bom sentido. Gostava de fazer zoeira com a gente. Era o tipo de pessoa que dava gosto estar junto. O que mais me marcou foi a vez que fomos em uma lanchonete. Ele lançava a proposta para quem quisesse ser desenhado ali na hora. Não dava outra, sempre tinha um que pagava pra ver e nessa ele comia de graça. Ele fazia uma caricatura perfeita da pessoa. Pense num cara gente fina e multiplique, este é o Kimura. E, acima de tudo, o que sempre admirei nele: a humildade.”
Em 1988, Primaggio Mantovi foi atrás de Zé Kimura. O estúdio Abril tinha negociado os direitos de produzir um gibi infantil de Os Trapalhões e procurava antigos colaboradores. Ele soube que estava num estúdio que fazia flâmulas de times, escolas. Ele topou o convite, mas segundo Primaggio “Kimura infelizmente não conseguiu, ele tinha perdido a mão, como se diz no popular.”
Em janeiro de 2007, dias após o falecimento de Ely Barbosa, recebi uma ligação do Zé. Alguém do estúdio passou meu telefone e disse que eu iria fazer uma homenagem ao desenhista. O Zé não lembrava muito de mim mas resolveu falar comigo. Disse que, como trabalhar com arte não deu certo em Sampa, ele tinha voltado para a cidade de Floresta para ajudar o pai com uma granja. A gente conversou por umas duas horas. Na segunda vez que ele me ligou, perguntei se poderia anotar as coisas que ele estava contando. Ele permitiu e recolhi o seguinte depoimento.
“Trabalhei na Abril três anos. Saí de lá e fui trabalhar na empresa de serigrafia do Ronald. Fiz artes até pro Café Pilão. Ajudava minha irmã Catarina na banca de verduras que ela tinha na feira. Catarina já faleceu. Gostava do Ely Barbosa, mas na época eu andava tão estressado que fiz até caricatura do seu Ely. Na época do militarismo fiz muita charge crítica. Eu fiz um monte de caricaturas sem nem pensar na ditadura. A gente brincava com o pessoal do Ely, mas ele não gostava muito. Às vezes era até meio bruto. Não guardei material de minha passagem por lá. São Paulo foi uma loucura. Perdi muita coisa que eu fiz. Depois de toda loucura em Sampa, eu fui ajudar na granja do meu pai em Floresta, que é perto de Maringá. Morar em cidade pequena e pacata é bem melhor. Minha família é fundadora de Floresta. Depois que meu pai morreu, voltei a pegar no lápis e papel. Fiz até uma arte pra Zaeli, empresa de produtos comestíveis. Aqui eu tive problemas mentais. Volta e meia eu volto pro hospital. Tomo uns remédios pesados. À noite é só pesadelo. Akineton de dia, Haldol à noite. O médico disse que meu problema é hormonal. Tô tão parado, tão ansioso...”
Ele anotou meu email e disse que um sobrinho ia me enviar umas HQs que ele havia feito, quando ainda tinha disposição pra sentar e usar lápis, papel e nanquim. Pedi o telefone dele pra ligar, mas ele não sabia, não estava escrito no aparelho. Disse que ia me ligar na outra semana, mas não ligou. O tempo passou.
O Memorial Kimura
Atualmente o casarão onde morava a família do tio do Zé Kimura, construído em 1950 no distrito de Floriano, se tornou um centro cultural, o Memorial Kimura, fundado em 2009 e que guarda objetos trazidos do Japão, utensílios agrícolas e domésticos do período do café da Companhia de Terras Norte do Paraná, material arqueológico encontrado lá, material iconográfico sobre a trajetória dos Kimuras, mostrando a saída da Província de Nagasaki, no sul do Japão, a passagem pelo estado de São Paulo nas fazendas de café e a chegada da família ao Norte do Paraná.
Em 2014 participei da exposição “Cartunistas com Gaza” organizada por Natalia Forcat, com Rice Araujo, Latuff, Marcio Baraldi e Eugênio Neves no Memorial Kimura em Maringá. Esta exposição foi uma ação conjunta entre Memorial e Andes (Associação Nacional dos Docentes de Instituições de Ensino Superior) e foi montada no Mudi, Museu Dinâmico Interdisciplinar da UEM. Foi lá que conheci a historiadora Rosangela Kimura, coordenadora do Memorial e prima do Zé, que me deu notícias dele. Realmente a doença era algo que atrapalhava sua rotina e o convívio social, ficando bastante recluso quando deprimido e muito agitado quando descompensado. Já não lembrava de muita coisa de sua passagem por São Paulo. Mas dizia que Chico Bento ou Hiroshi eram inspirados em suas histórias caipiras de sítio. Outra irmã do Zé, Madalena, dizia que o personagem havia sido inspirado num amigo de infância do Zé, que hoje vive no Nordeste.
Conversando com Rosangela, sentimos a necessidade de registrar o trabalho tão importante deste querido desenhista, anônimo para tanta gente que acompanhou os gibis e jornais da época em que ele atuou. Fui pesquisar em quais gibis ele tinha publicado suas artes. Ao recuperar as imagens das páginas de HQs do Zé Kimura para os gibis Os Trapalhões – da editora Bloch – pude perceber que, além de desenhar muito bem animais de dois e quatro pés, ele tinha um desenho muito interessante de casas, ruas e objetos em geral. Normalmente, desenhistas têm uma fórmula manjada pra desenhar sofás, mesas, cadeiras, enceradeiras (ops, isto nem existe mais). Um jeito convencional, desenhos já batidos e repetidos que funcionam graficamente. Pois o Zé fazia isso de uma forma diferente. Era bem moderno. Sua representação gráfica de automóveis, bicicletas, móveis, janelas e portas tinham um estilo de design moderno. Ele era um artista muito atualizado e atento ao mundo à sua volta.
Conheça o Memorial Kimura AQUI
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(*) Bira Dantas - chargista, cartunista e quadrinhista é membro da AQC (Associação de Quadrinhistas e Caricaturistas de SP), da Revista Pirralha e da Revista Grifo. Toca gaita nas horas vagas, com outros cartunistas e quando se encontra com o netinho Liam, em Londres.