Tio Donald e seus sobrinhos indígenas

Autor:
Guto Camargo

Seção:
Ponto de vista

Publicado em:
10 de Outubro de 2023

Tempo de leitura:
6 minutos

As semelhanças entre o Pato Donald e os indígenas (montagem; desenho de Carl Barks sobre gravura de Jean-Baptiste Debret)

Tio Donald e seus sobrinhos indígenas

Por: Guto Camargo

Não se trata de nenhuma novidade apresentar os heróis dos quadrinhos como fruto de uma mitologia contemporânea surgida com a modernidade industrial e urbana. Lendas e mitos antigos servem como referência para a criação de heróis e de suas aventuras, em alguns casos os próprios mitos se tornam super-heróis; como é o caso da Mulher Maravilha (uma princesa Amazona) e Thor, o Deus do Trovão reencarnado. Em outros textos a ligação é mais sutil mas também facilmente identificável; Super-Homem se assemelha a um ser divino que desce dos céus para salvar a humanidade.. Em todos os casos, o mito está presente, o que faria dos quadrinhos um campo fértil para estudos antropológicos.

Mas a visão antropológica sobre os quadrinhos não é tão conhecida assim. Peguemos o caso dos gibis do Pato Donald onde as formas de parentesco não são estabelecidas a partir do pai ou da mãe, mas sim de relações com os tios; Patinhas é tio de Donald, que é tio de Huguinho, Zezinho e Luisinho e, para completar, ainda tem o primo Gastão. Um clã onde os laços familiares mereceriam maior atenção por parte dos antropólogos.

Inicialmente é preciso dizer que os três sobrinhos não são órfãos, mas sim filhos da irmã de Donald, Dumbella Duck, e apareceram pela primeira vez na vida de Donald nos curtas metragens para o cinema, portanto, antes do surgimento nos gibis. Sua criação foi uma encomenda do departamento de roteiros dos Estúdios Disney para Harry Reeves e Carl Barks (que depois se tornaria o desenhistas mais famoso dos gibis do Pato Donald onde continuaria usando os patinhos).

Barks esclarece em uma entrevista que ele e Reeves ficaram pensando na melhor forma de introduzir os sobrinhos na vida de Donald e optaram pelo jeito mais simples; um belo dia ele recebe uma carta da irmã dizendo que os sobrinhos iam visitá-lo e pronto. Assim em 1938 nas telas dos cinemas, no curta Donald's nephews, são introduzidos no mundo Disney os trigêmeos Huguinho, Zezinho e Luisinho (Huey, Dewey, e Louie).

Para que serve o tio?

Bronislaw Malinowski (1884 - 1942) no período em que passou entre os povos das ilhas Trobriands, na Nova Guiné, observou que entre uma mulher e seu irmão existem laços que fazem dele "o guardião natural dos filhos dela que, portanto, têm que considerá-lo, e não ao próprio pai, como o chefe legal da família". Esta relação determina uma série de obrigações ao tio, entre elas a de levar alimento até a casa da irmã que passa a morar na comunidade do marido, este, por sua vez, também passa a ter obrigações perante o irmão de sua mulher.

Outro antropólogo que estudou as estruturas familiares primitivas foi Radclife-Brown (1881 - 1955), que quando professor na África do Sul, publicou em 1924 o artigo The mother's brother in South Africa  (O irmão da mãe na África do Sul). Neste caso o estudo trata de uma estrutura familiar onde a autoridade sobre o filho é paterna, mas existe uma relação de afinidade desta família com o irmão da mãe que pode eventualmente assumir um papel na estrutura familiar "substituindo" a mãe.

Décadas depois Claude Lévi-Strauss (1908 - 2009) observa relações semelhantes entre povos ameríndios o que o leva a teorizar sobre a existência de uma espécie de "estrutura universal' que, de maneira comum a todos os povos, determinaria alguns comportamentos mais ou menos padronizados em todas as relações familiares. Entre estas também estaria o tabu do incesto que, por sua vez, determinaria o papel a ser ocupado na sociedade primitiva pelo irmão da mãe que equilibra o sistema uma vez que as mulheres são originárias de grupos externos (ideias que ele desenvolve em As estruturas elementares do parentesco, de 1949 ).

O que diz respeito especificamente ao papel do tio o autor apresenta sua síntese na qual podemos tentar encaixar os roteiros clássicos dos quadrinhos onde Donald se relaciona de maneira ora autoritária, ora amistosa com seus sobrinhos.: "Nas sociedades em que a relação entre pai e filho é familiar, aquela entre tio e sobrinho é severa; e onde o pai aparece como o austero depositário da autoridade familiar, o tio é tratado com ternura e liberdade."  (*)

Aqui não se pretende avaliar autores e escolas antropológicas  mas apenas elencar levantamentos etnográficos que de maneira genérica permitam traçar um paralelo entre a relação do Pato Donald com seus sobrinhos que apesar de animais pertencentes a espécie Anas platyrhynchus se comportam como Homo sapiens.. Agora a questão que resta é saber se estas relações observadas em sociedades ditas primitivas ainda subsistem na contemporânea,. O próprio Lévi-Strauss levanta esta questão: "Ainda reconhecível há dois ou três séculos, essa estrutura se desagregou sob o efeito das mudanças demográficas, sociais, econômicas e políticas que acompanharam - às vezes como causas, às vezes como efeito - a Revolução Industrial".

De certa forma a resposta a esta indagação foi dada apelo autor que ao tomar conhecimento da declaração do conde Spencer, irmão da princesa Diana, que após sua morte em um acidente de carro em 1997 afirma que como tio teria o direito de proteger e acolher os filhos de sua irmã. A conclusão que  Lévi-Strauss  tira deste episódio é bastante pertinente ao nosso propósito quando afirma: "Entre as sociedades ditas complexas ou evoluídas e aquelas chamadas erroneamente de primitivas ou arcaicas, a distância é menor do que poderíamos imaginar".

Se avaliarmos - à luz destes estudos antropológicos - a solução encontrada pelos roteiristas para justificar a presença dos sobrinhos  junto ao Tio Donald, que como sabe qualquer leitor de gibi é na prática o responsável por acolher, educar e criar os trigêmeos, é não só a mais simples como também a melhor acerta socialmente. O leitor, por 85 anos, convive com esta relação de parentesco sem maiores conflitos ou contestação, achando-a perfeitamente normal, exatamente como faria um morador de uma comunidade primitiva. Neste caso,  parece que a arte imita a antropologia.

.............................

(*) As declarações de Lévi-Strauss neste texto foram reproduzidas do artigo A volta do tio materno, publicado em Somos todos canibais (ver obras consultadas)

Obras consultadas:

Bronislaw Malinowski. Crime e costume na sociedade selvagem. Editora UNB

Claude Lévi-Strauss. Somos todos canibais. Editora 34

Timothy Raison (organizador). os precursores das ciências sociais. Zahar Editores.

Edmund Leach. As ideias de Lévi-Strauss. Editora Cultrix.

Thomas Andrae. Carl Barks e os quadrinhos Disney. Criativo