Ciça viajando entre HQs e literatura infantil

Autor:
Redação

Seção:
Desenhistas

Publicado em:
8 de Março de 2023

Tempo de leitura:
22 minutos

As desenhistas da Pirralha, com o reforço da Laerte, entrevistam Ciça, uma pioneira das HQs

Ciça viajando entre HQs e literatura infantil

Por: Redação

Maria Cláudia, ou melhor, a Crau, uma das grandes ativistas e liderança entre as desenhistas mulheres no Brasil (ela atua com quadrinhos e humor gráfico desde a metade dos anos de 1970 com o surgimento da revista O Bicho) reuniu de maneira virtual por ocasião do Dia das Mulheres (8 de maio) as artistas que atuam na Revista Pirralha, Maria Rita, Dadi  e Akemi, com o auxílio precioso da Laerte, para um bate papo com a Ciça, Cecília Whitaker Vicente de Azevedo Alves Pinto (foto ao lado), que além de pioneira é uma das mais importantes artista da histórias das HQs nacionais. O resultado do bate papo, onde a artista aborda sua carreira, a infância, vida familiar e a literatura infantil a qual vem se dedicando nas últimas décadas, é um verdadeiro documento que recupera parte da história dos quadrinhos no país.

O resultado da conversa você pode ler a seguir

CRAU – Oi, Ciça… começando nossa entrevista, vamos partir para a oralidade, que é a ideia… Primeiro, boa tarde, feliz de te “ver”, de poder conversar com você, de ter essa oportunidade de te entrevistar, de a gente fazer mais um papo de comadres, como aquele que a gente fez lá nas Periquitas. Vou começar passando a palavra para a Laerte, que mandou uma pergunta.

LAERTE – Oi, Ciça, eu queria saber o seguinte: você tem um livro sobre parlendas.. um, não, você tem mais de um livro sobre jogos de adivinhação, de falas, sobre provérbios e tudo... E a sensação que a gente tem é que isso faz parte do seu crescimento, que você aprendeu e viveu esses jogos todos... Eu queria saber se você acha que isso é um ramo da cultura que tá em crise, que tá pra terminar, que a vida da gente vai enterrando toda essa tradição. Queria saber o que você acha.

CIÇA – No “Livro de provérbios, ditados, ditos populares e anexins”, eu listei mais de 3000. Eu fui pesquisando com muito gosto, porque fez parte da minha educação. Quando eu era pequena, São Paulo era muito mais rural. Então tinha muita vivência de interior, e essa coisa de parlendas, ditados, tudo isso era importante. E acho que faz falta, sim. Eu tenho também livros para crianças em que eu brinco muito com isso, com trava língua… e é isso, eu acho importante porque, inclusive, aumenta o vocabulário da criança que está aprendendo. E às vezes o editor fala assim: Ah, mas essa palavra é muito difícil! Mas eu sempre procuro pôr uma palavra difícil… Porque tem que evoluir, né?

CRAU – Ciça, eu achei lindo, primeiro saber que você tem esses livros, que eu não sabia, e segundo porque eu peguei ecos dessa sua geração apesar de ser de outra… eu fui criança nos anos 60, anos 50 eu era bebê ainda. Eu tinha uma tia madrinha que me contava muita piada e ela me deu livro escrito à mão. Era um caderno preto de capa dura, todo de adivinhações. Ela escrevia as adivinhações no começo do livro e as respostas no fim. Eu lembro de uma assim: “O que é, o que é? Bichinha magra, com uma perna só. Pegam-lhe a cauda e lhe dão um nó. Depois a obrigam a perfurar mil tuneizinhos até cansar”. É a agulha e a linha.

E eu ia justamente te perguntar quais foram suas primeiras influências, quais foram os primeiros quadrinhos que você leu. Mas você veio com uma coisa muito mais ancestral, que fala muito mais da nossa cultura brasileira, lusitana. Essas coisas são imemoriais, elas devem vir da idade média. Muito legal saber que a sua origem na comunicação vem daí.

CIÇA – Exatamente. Eu tava vendo uma coisa… você tava falando dos anos 50, que você não viveu. Pois é. Na verdade a minha infância foi nos anos 40, porque eu nasci em 1939. Então eu sou mais antediluviana ainda, né? Nos anos 40 aqui era muito mais rural em tudo. Então isso aí é uma coisa a se considerar, porque a comunicação era outra coisa. Não sei se melhor ou se pior, mas de qualquer maneira era completamente diferente. Então, a minha formação foi tendo mudanças aos pulos até hoje.

Na verdade, é o seguinte; eu tive influência de muitos lugares. Primeiro, quando eu era bem pequena, o meu pai queria que eu aprendesse outras línguas. Então ele me dava revista em quadrinho, só revistas americanas e francesas. As francesas eram uma edição bonita, chamada La Semaine Suzette. E as americanas eram as que tinha, principalmente Dysney. E por incrível que pareça, eu recebia muito as argentinas, que eram ótimas. Aí já não eram muito para criança, eram menos para criança, mas tinham muito humor. E obviamente eu gostava, adorava, aprendi a ler inglês, francês e algum espanhol por revistas.

E as revistas brasileiras, a gente tinha uma tia que morava vizinha, que tinha filhos e eles tinham essas revistas brasileiras, Tiquinho, Chiquinho, Bolão e Azeitona (Nota: Reco-Reco, Bolão e Azeitona, os bonecos redondos do Luís Sá) e era ótimo. Então eu tinha um mundo de quadrinhos, quase que literalmente. Claro que isso me influenciou e para mim quadrinhos era assim o céu. Onde eu me divertia, e onde eu me informava também

Mas eu era muito leitora, também, e tinha muitos livros e gostava muito de ouvir contarem histórias e tudo. Então eu acho que tive uma infância privilegiada nesse sentido de quadrinhos e de literatura, porque eu tinha à mão mesmo. Essa didática de aprender francês… era uma coisa prazerosa. Eu aprendi. Eu tenho então essa lembrança linda dos quadrinhos da minha infância.

MARIA RITA – Boa tarde, Ciça! Agora que você tá falando dessa coisa da zona rural que você chegou a viver… não era bem zona rural, mas era meio, né? Que uma das perguntas tem a ver com isso. Você, além do Pato, tem formiga, galinha, sabiá… você foi colocando os personagens, né? Eu queria saber: de onde surgiram esses personagens? Por que o Pato, por que a Formiga? Você saberia dizer como foi feita essa escolha?

CIÇA – Maria Rita, respondendo pra você, eu sempre tive uma grande simpatia pelos patos, tinha na fazenda do meu avô, eu tava sempre lá, minha infância mais jovenzinha eu passava na fazenda. E eu tinha paixão por patos. E tinha patinhos que eram meus, que eu dava nome, tudo. Aí, quando eu fui desenhando, naturalmente apareceu um pato. Depois, quando eu quis fazer o povo, achei que nada mais adequado do que formiga, né? As vezes a gente até compara povo com formiga.

Na verdade, foram surgindo. Porque eu sou apaixonada por natureza, por bicho, talvez por ter morado em fazenda uma parte da minha infância e aí eles foram surgindo um atrás do outro. Quando teve o Pato, logo eu resolvi botar a Filomena, e eu tinha o Tico-tico… eu tenho outros quadrinhos que fiz para um jornal feminista, que chamava Bia Sabiá e era uma família. Então foi surgindo assim, de afeto.

CRAU – Ciça, uma pergunta importante: “Por que não tem tanta mulher no cartum, não tem tanta mulher na charge, por que algumas pararam?”, esta é a pergunta que não param de fazer pra gente. Você é quase uma exceção, você e a Mariza Dias Costa, esta uma exceção absoluta, que se dedicou ao desenho para além de qualquer coisa, ela não tinha outro ponto de distração, nem e-mail ela tinha, conseguiu ficar livre de celular, de e-mail, de tudo, só pra desenhar… mas a gente sente muita concorrência de outros pontos de interesse nos puxando. Como foi essa luta dentro de você?

CIÇA – Olha, não foi fácil, não posso dizer que foi fácil. Mas primeiro foi muito prazeroso. Eu tinha realmente muito amor à minha tirinha. Eu gostava. A Rita perguntou qual era o meu personagem predileto. Era, com certeza, as formigas. Porque era uma tribuna que eu tinha pra comentar o que tava acontecendo no país. Mas neste ofício de fazer os quadrinhos eu tive sorte, porque eu tinha três filhos, passei muito tempo sozinha cuidando dos filhos, eles não tinham babá, tinha só uma diarista, era muito trabalhoso, eram três crianças pequenas. Mas a minha sorte foi que eu tava pesquisando sobre Disney, que até hoje eu gosto muito de ler, e eu ficava vendo aqueles quadrinhos complexos, cheios de elementos. E fui pesquisar e descobri que ele tinha uma imensa equipe.. ele fazia a história, desenhava o principal e tinha um que coloria, um que botava os objetos, outro que fazia a letra. Enfim, era uma equipe. E eu olhei para o lado, e a equipe estava do meu lado! Meu amado marido Zélio, que falou: Olha, faz o raf que eu faço a arte final. E foi assim que eu consegui (ri). Olha que bom! Trabalhar em equipe sempre é o melhor.

E continuava a ter o de sempre: roupa de criança, a comida, o supermercado, a escola, reunião de pais e mestres, criança que cai e se machuca, e você tem que correr e buscar, bastante coisas… é que realmente a gente tem outro tipo de criatura, não é só aquela do quadrinho, tem as criaturas humanas que a gente também inventou. Mas deu certo.

Nas tiras do Pato, na Folha, eu tinha A Família. A família do galo, da galinha. No mutatis mutandi era minha família, né? Eu, o Zélio e três filhos. E aí eu punha muito da nossa vivência. Sempre tendo um gancho de união, assim de trabalho de equipe, porque na verdade eu gostava.

O engraçado é que o galo e a galinha existiram. Ele chamava Hermes e era um galo que as crianças ganharam na feira, na Páscoa. Então esse pintinho que eles ganharam acabou virando um enorme dum galo que eles deram o nome de Hermes. E o Hermes não cantava… então eu fui ao mercado, comprei uma galinha carijó, que deram o nome de Naná, e o galo não parou de cantar nunca mais. Mas eles eram personagens reais.

AKEMI – As crianças de hoje estão sobrecarregadas de informações. Você acredita que há espaço para tirinhas “pensadoras” para crianças de hoje? A minha impressão é que as informações atuais são apenas uma “dedada”. Todo mundo informado e ninguém formado.

CIÇA – Olha, é como eu disse há pouco, o que envolve criança, envolve afeto, e envolve também humor. Criança gosta de humor. Criança gosta de ritmo. Então, com tudo isso, a criança é levada a ouvir o que você tá falando, ou ver o que você tá desenhando, ou sentir o que você tá sentindo. É só, eu acho, uma questão da forma.

NANA – Estou amando ver as tirinhas dos patos… uma figura neutra numa época de conflitos políticos. Eu não conhecia porque nasci em 74.

CRAU – Nana, muito obrigada pela sua participação. Vou sugerir que você faça de forma oral, porque a gente tá tentando manter a coloquialidade nesta conversa. Fazer ela ficar mais próxima de um bate-papo, já que a gente não pode se encontrar. Então, muito legal sua pergunta. A Ciça já respondeu, vou passar assim mesmo, mas se você quiser continuar oralmente é legal também.

MARIA RITA – Adorei a história do galo que não cantava, que lindo!

CRAU – Ciça, como encontrar o seu material? Se a gente quisesse hoje pegar esses livros de parlendas para dar pros nossos netos, ou nossos filhos, como a gente encontra todo o seu material? Onde encontrar o acervo Ciça Pinto?

CIÇA – Olha, Crau, sobre o “Acervo Ciça Pinto”, é assim: o 'Livro de provérbios, ditados, ditos populares e anexins' esgotou... foi republicado algumas vezes, pela editora SESC ou SESI, uma delas. Deve ter, eu sei que tem, você consegue nessas livrarias de sebo. E os outros acho que só encomendando para as editoras. Eu trabalhei muito com a Nova Fronteira – que também fechou, infelizmente. Mas eu tenho meus livros na Melhoramentos, na editora Batel. Tem um livro que eu gosto muito que é mais para uma criança mais velhinha, 13 anos assim... menina. Chama “Dia de Aninha”. E esse é da editora Global. Enfim, se você quiser um dia eu mando a lista deles. Tem uma lista comprida, tem uns vinte livros de trava língua, trava trova, trava trela... e que eu brinco muito com as palavras para as crianças, e é tudo assim bem ritmado, e engraçado. E tem um que eu gosto muito que eu fiz de encomenda do governo de Rondônia, chama “Rondom, menino cândido” que é a vida do Rondom para crianças. É ilustrado pelo Ziraldo e ficou muito bonito. Mas esse eu tô tentando ver se consigo publicar fora da imprensa de Rondônia porque o direito é meu ainda e, ficando lá, fica só lá.

MARIA RITA – Ô Ciça, e criar hoje alguma coisa, algum personagem, alguma tirinha, você não tem vontade, não?

CIÇA – Olha, realmente, acho que não. Não tenho vontade; eu perdi o fio, sabe? Eu tô gostando mais de escrever meus livros. Se bem que as vezes com a situação política dá uma coceira, assim, dá uma vontade de fazer de novo. Mas, sabe, é tanto trabalho conseguir que o cara do jornal se atente pro assunto ‘quadrinhos’... era assim desde a época que eu comecei. Então eu tenho um pouco de preguiça de fazer isso. Eu tô criando meus livros. Agora eu tô acabando um livro chamado ‘Bichos esquisitos’. E também tem uma série que eu tô fazendo e curtindo muito, pela editora Batel, que são publicados em português e em inglês. Então tá muito bom. Acho que eu já tô numa idade que da vontade de sentar numa cadeira de balanço e ficar fazendo tricô, sei lá. Tô com preguiça. Mas pra escrever eu gosto.

CRAU – Sim, porque você já imaginou nós, dessas gerações antigas, fazermos alguma coisa atual, sobre o que nos acontece, o que acontece neste mundo hoje? Eu sugeri de a gente fazer As Periquitas da Pirralha, onde nós íamos levar os nossos assuntos, os nossos temas, e também publicar lá naquele espaço virtual da Pirralha… porque, é lógico, o espaço tá aberto pra todo mundo, nós não temos mais esse problema, “ah, não tem espaço para nós”. A Pirralha é aberta para todo mundo, e a gente tem que se sentir igual mesmo, em condições de publicar. Mas às vezes eu acho que tem assuntos que são muito nossos, e dizem respeito a essa dificuldade que a gente tem de lidar com várias coisas, e que as vezes reduz “um pouco” a nossa produção, em relação aos grandes expoentes da arte, que via de regra são masculinos com exceção da Mariza e da Ciça, também porque produziu muito.

CIÇA – Eu acho superlegal, eu acho inclusive que é o que vai dar continuidade, vai chamar gente nova gente que ta procurando um espaço. Eu acho fundamental. E porque a pessoa novinha diz; “onde é que eu vou?”. Sabendo que tem um espaço abre um campo também para ela criar, um espaço dentro dela pra começar a criar porque sabe que vai ter um lugar pra ela.

CRAU – Exatamente. Escrever… a origem do quadrinho é o roteiro. Se é roteiro, você pode fazer, né? E a gente achar desenhistas para executar! Que elas existem, também. Foi esse o esforço que a gente fez nas Periquitas, né? Tentamos começar a formar isso. Quem sabe a gente continua. De qualquer jeito eu acho que seus textos são bem-vindos na Pirralha. Eu aguardo com ansiedade que você faça uma crônica, um texto pra Pirralha.

CIÇA – Ah, que ótimo saber disso. Porque eu gosto dos meus textos (ri modestamente). E você falou em roteiro, você sabe que eu fiz muito roteiro, pro Pererê do Ziraldo? Inclusive fiz um álbum que ele tem, que saiu recentemente, chamado ‘A grande aventura’. Eu que fiz o roteiro todo praticamente quadrinho por quadrinho, foi ótimo. E ficou muito legal. Eu tenho só um exemplar aqui em casa, senão te dava um, porque você ia curtir também.

CRAU – Ciça, emergindo das profundezas! Como é que a gente não sabe isso? E eu curti tanto o Pererê, quando tinha meus sete anos. A primeira edição do Pererê. Como eu curtia aquilo, como me iluminava o dia! E não sabia que tinha uma mulher na base da história. A gente tem direito de saber disso! A gente tem direito.

MARIA RITA – Então, Ciça. Olha só. Eu também sempre fui a-pai-xo-na-da pelo Pererê. E você fala isso, eu fico lembrando das historinhas. Será que essa era roteiro da Ciça? Será que aquela outra era roteiro da Ciça? Olha só, você também tava lá, na minha infância e eu não sabia que tinha você por trás.

AKEMI – Eu amava o Pererê… esse foi da minha época. Ciça, andei vendo seus traços, seu desenho, a sua visão carinhosa de encontrar felicidade nas coisas pequenas… que conseguia alcançar as crianças, na época. E hoje também conseguiria fazer frente aos complicadíssimos desejos que a gente tem… a inteligência artificial, que tem um gráfico superperfeito, computadorizado… E tem aquela coisa do filosófico. Eu comecei a desenhar muito tarde, tenho muitos bloqueios. Então qual é a sua dica para a gente… porque eu vejo que não tem muita mulher. Quando a gente desenha.. às vezes a crítica me deprime. Não por causa da crítica em si, que pode ser boa, pra gente melhorar. Mas com a gente lida com a depressão, ainda mais sendo mulher. Eu não tenho a destreza de uma artista de longa data e também não tenho tanta sacada filosófica como você, que nasceu em 39, com um repertório infinito, que tem uma história, e, com certeza, já passou por momentos ruins… como lidar com esses momentos difíceis? O que a gente faz para superar tudo?

CIÇA – Olha, Akemi, eu vou te falar da minha experiência. Eu comecei a desenhar pra publicar, aí eu fiz muita coisa, achei ótimo, ficou como eu queria. Mas eu olho agora, no começo não era nada de… nem era bom. Mas eu insistia, insistia, insistia, insistia... eu dizia: eu vou fazer uma coisa legal, uma coisa que fale comigo. Né? Então todo dia eu fazia nem que fosse um pouquinho, não parava de fazer por ser fim de semana. Eu fazia uma disciplina de fazer alguma coisa, nem que fosse bem pouquinho. E ter a ideia de que primeiro, os veículos, os jornais que têm quadrinho precisam de quadrinho. Depois, que as pessoas às vezes te fazem crítica porque têm um padrão e elas acham que tem que ser daquele jeito ou daquele outro jeito, tem que ser Disney, tem que ser Flash Gordon, Batman, sei lá. E você tá fazendo uma coisa nova, sua. E que todo mundo precisa de uma coisa nova, aprimorada pelo seu fazer diário. Porque você não tá fazendo pra ninguém, na verdade, você tá fazendo pra você, pra você ficar satisfeita e um dia você olha e fala: mas isso é bom demais. Isso acontece! E é muito gostoso quando você consegue chegar nesse ponto. Então aí você se despreocupa. As críticas são boas, mas não podem te desanimar, porque elas são só uma opinião de outra pessoa. A sua opinião é o que tá no papel. Vai em frente, que cê vai dar certo, tudo. Escuta essa avó, quase bisavó, que tá te falando que tá certo!

AKEMI – Nossa Ciça fiquei ate emocionada com o que você falou. Eu desisto muito fácil e quando você falou '‘insista’' e você conseguiu, já passa a ser um exemplo pra mim. E eu vi o amor que você coloca então acho que vai valer a pena. Eu gosto de desenhar por amor. E legal que chegue a mais pessoas também, mas… Obrigada por ser inspiração, obrigada Rita também, porque as aquarelas que a Rita faz.. são muito perfeitas. É boa essa perfeição,  porque inspira a gente. Obrigada à Cláudia (CRAU) também, e à Laerte. E um abraço a todas vocês.

DADI – Toda vez que tem exposição “História da HQ Brasileira”, Ciça me orgulha ao furar a muralha masculina da HQ. Acabo de fazer minha pergunta por escrito no grupo para o qual você me convidou. Nem pensei em comentar a minha obra, mas falar de outras duas veteranas, a Conceição Cahu e a Ivete Ko. Mas realmente eu tenho a ver com essa questão de usar a fábula, de usar animais para comentar a condição humana. Isso sim, nisso somos gêmeas!

DADI – Boa tarde, linda. Antes de mais nada, devo dizer que eu queria muitíssimo conhecer a Ciça naquele dia do lançamento das Periquitas… ela estava meio adoentada. Eu não só acompanhei a ela, bem como a outras duas veteranas. E a minha pergunta é se ela chegou a trocar ideias com essas veteranas. Se ela chegou a conversar com elas sobre a questão da mulher podendo ser a protagonista do desenho na HQ. Essas duas quadrinistas foram a Conceição Cahu e a Ivete Ko. Existiram várias mulheres roteiristas nos tempos das revistas de terror da editora Gepp, porém, na hora de desenhar só os homens é que faziam esse trabalho. E minha pergunta foi essa, se ela chegou a trocar ideias com essas artistas sobre prazeres e dificuldades de fazer quadrinhos no Brasil sendo mulher.

CIÇA – Bem, eu queria dizer que a Cahu, sim, a gente teve uma convivência boa, legal. Ela esteve várias vezes aqui em casa, muitas vezes. A gente conversou bastante sobre trabalho e ela realmente é uma artista importante, deveria ser mais prestigiada. Pena que ela produziu pouco, e foi embora muito cedo. E a Ivete Ko eu não conheci, nunca troquei uma ideia com ela. Infelizmente.

CRAU – Quero agradecer a disposição de todas para este bate papo, e à Ciça pela generosa acolhida destas irmãs de traço e pensamento, ao compartilhar sua valiosa experiência.

A despedida do Pato

Quando o jornal Folha de S. Paulo implantou o seu "projeto Folha" o caderno Ilustrada foi um dos atingidos pelas mudanças, entre elas o cancelamento de duas tiras diárias que foram por muito tempo uma verdadeira marca do jornal; O Pato, da Ciça, que era publicado havia 18 anos e a Turma da Mônica, do Maurício de Souza, cria da casa que começou a publicar seus quadrinhos por lá em 1959. A dispensa se deu de uma forma um tanto desrespeitosa, através de um simples telefonema, o que fez com que os colegas Fortuna, Maringoni, Jal e Laerte, da Associação dos Quadrinhistas e Caricaturistas (AQC) enviassem uma carta de protesto ao jornal.

"Ao cortar de suas páginas uma série de tal envergadura - coisa que nem a própria ditadura fez - a Folha de S. Paulo não prejudica somente sua autora, mas principalmente seus leitores, que inclusive não foram sequer comunicados daquele corte"
Trecho da carta da AQC à direção da Folha de S. Paulo

O protesto não foi capaz de reverter a decisão, mas, pelo menos, fez com que a empresa ao suspender os quadrinhos do Maurício de Souza tivesse o bom senso de chamá-lo para uma reunião. Na visão da AQC, o jornal poderia ter cancelado as tiras estrangeiras, e não as produzidas no Brasil.

Posfácio de uma conversa

O que fica nas entrelinhas desta entrevista coletiva é que nem sempre as mulheres se omitiram de participar do mundo da HQ e do desenho de humor, mas que a memória dessa participação é que tem sido continuamente apagada. Na revista O Tico-tico havia duas autoras e pasmem, chamavam-se ambas Giselda! O nome Marge nas capas das revistas ambiguamente nos confundia, mas era mulher a autora da Luluzinha, bem como a Maria Flora, prima da Ciça, que a traduzia, e ninguém sabia de onde vinham aquelas tiradas cheias de humor. Na revista Balão, pioneira no underground tupiniquim, estavam a Conceição Cahu e a Lúcia, que dificilmente são citadas. Quando comecei a me aventurar no desenho de humor, me inspirava uma colega do colégio Iadê que já publicava na revista Crás, a Patrícia Mendonça. No evento Lady Comics a que compareci em 2016, em BH, havia um ginásio cheio de artistas mulheres, algumas trans inclusive. No ano seguinte, num encontro com a Trina Robbins, no Rio, havia uma sala cheia de criadoras de HQ e ali ficamos sabendo que muitas HQ americanas, em que apareciam mulheres, eram feitas por garotas. Nesses encontros fizemos um trato: chega de pedir desculpas e se sentir inferior, o que precisamos é mais desse combustível que a Vó Ciça sabiamente receita: insista, insista, e busque a sua própria perfeição. Cada dia trabalhado é um passo nesse caminho.
Crau

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Foto de abertura acervo do cartunista Edra, publicado em seu blog pessoal